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Crônicas
08/08/2006 - 14h57
Pulos e torrão de açúcar
Anna Lee
 

Questão antiga e das mais insolúveis é a relação do homem com o invisível, com o inalcançável, com o Deus. Impulsionado pela incapacidade de aceitar a lógica própria da vida que o torna barco à deriva, o homem não se entrega nunca. É um desesperado em busca do controle dos acontecimentos e, muitas vezes, tenta se fazer senhor absoluto da terra, do céu e do mar. Ainda que saiba que, de longe, a morte o espreita. Que um dia ela virá, implacável, e ele não poderá evitá-la.

O "world jump day", na quarta-feira passada, foi uma evidente brincadeira, mas, mesmo assim, serviu de retrato do desejo patético de onipotência que domina a existência humana. A história era mais ou menos essa: exatamente às 7h39m13s (horário de Brasília) - se bem que li outras versões em que o horário estipulado era de 8h39m13s - 600 milhões de pessoas deveriam pular no hemisfério ocidental para que a terra mudasse sua órbita. Com isso, nosso planeta seria afastado um pouco mais do sol e o problema do aquecimento global seria resolvido. O evento foi uma gaiatice lançada na Internet que, pelo sim, pelo não, muitas pessoas aderiram. Quando vi a foto de um grupo que participou da brincadeira na Suíça, lembrei de um personagem do Cortázar.

Desde a infância, sempre que deixava cair alguma coisa no chão, ele se obrigava a apanhá-la imediatamente, fosse o que fosse, pois sentia que se não agisse dessa forma, alguma desgraça aconteceria não a ele, mas alguém de quem gostava e cujo nome começava com a inicial do objeto caído.

Teve um dia em que estava num restaurante com um grupo e deixou cair um torrão de açúcar, que - contrariando a natureza dos torrões de açúcar que ficam quietos logo que tocam o chão - rolou para debaixo de uma mesa qualquer bem longe da que ele se encontrava.

Os amigos que o conheciam bem se entreolharam e riram. O que, apesar de tê-lo feito sentir uma certa raiva, não foi capaz de demovê-lo da necessidade de ir atrás do torrão de açúcar. Um dos garçons, percebendo o movimento diferente e pensando que algo precioso havia desaparecido, ofereceu-se para ajudar o cliente que, a esta altura, já se encontrava deitado no chão vasculhando canto por canto do restaurante, inclusive, entre os sapatos das pessoas. Era terrível o medo de que alguém pudesse esmagar o torrão de açúcar antes que ele pudesse alcançá-lo.

Solidário e ainda sem saber qual era a preciosidade que merecia tal esforço, o garçom curvou-se no chão e os dois se transformaram em quadrúpedes rastejantes. Assim, quando estavam bem debaixo de uma mesa, numa espécie de grande intimidade e penumbra, o garçom lhe perguntou do que se tratava o objeto desaparecido e ele respondeu.

O homem ficou estupefato. Furioso, levantou-se imediatamente, enquanto ele, sem nenhuma vontade de rir, desesperou-se ainda mais e começou a levantar os sapatos das mulheres para averiguar se, por acaso, o torrão de açúcar não teria ficado escondido no arco formado entre os saltos e as solas.

Ouvia as gargalhadas dos amigos, enquanto movia-se de uma mesa para outra, até encontrar o açúcar escondido atrás de um pé de mesa Segundo Império. E, então, dominado pela fúria, com o açúcar metido na mão, sentiu o torrão se misturar ao suor da pele, desfazendo-se asquerosamente numa espécie de vingança pegajosa.

Pulos cotidianos em busca do inalcançável, que a morte comprazente vigia.


Nota do Editor: Anna Lee é jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte" / Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem / Ed.Globo e Manchete.

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