A experiência de mais de quarenta anos me ensinou que o bom leitor não entra num novo livro com inocência adâmica. Baseado nas informações prévias que colheu do título, da orelha, das resenhas e de outras fontes, entra carregado de perguntas cujas respostas espera encontrar ali. Às vezes, no curso da leitura, tem de trocar de perguntas - nisto consistem nove décimos do proveito da experiência -, mas, se não traz nenhuma, não tem nem o que trocar. Desliza pelas linhas em estado sonambúlico, com absoluta passividade mental, e só o que lhe resta no fim é uma vaga "impressão", que ele traduz pelas expressões gostei e não gostei. Não leio assim nem mesmo o Pato Donald, e não pretendo ler assim o livro do sr. Ricardo Kotscho, Do Golpe ao Planalto - Uma Vida de Repórter, lançado pela Companhia das Letras dois ou três dias atrás. Ao contrário. Tantas coisas me chamaram a atenção no noticiário do lançamento que, confesso, raras vezes me preparei para uma leitura levando perguntas tão inquietantes. Pelo menos uma delas não me sai da cabeça. Ela refere-se ao ponto mais visível da narrativa, amplamente destacado pelos resenhistas: o testemunho direto de que, ao lado do notório sr. José Dirceu, o presidente e o vice-presidente da República participaram das negociações do mensalão, discutindo com o chefe do PL, Valdemar Costa Neto, o montante das propinas a pagar em troca de algumas dúzias de consciências. Nem discuto as conseqüências mais incontornáveis da revelação. Já afirmei repetidas vezes - e provei - que o sr. Luiz Inácio Lula da Silva é um mentiroso cínico, e, ainda sem me considerar mais inteligente do que a média humana, jamais consegui reunir em mim o coeficiente de idiotice requerido para acreditar que ele nada sabia do mensalão. A revelação nada revela senão o óbvio, mas o conhecimento do óbvio, no Brasil de hoje, só serve para alimentar a esperança impotente na eficácia de instituições que não existem mais. O País está integralmente sob o domínio da esquerda revolucionária, e um Lula a mais ou a menos, quer nos livremos dele por via judiciária, por maioria eleitoral ou pelo simples decurso do prazo da sua existência biológica, como vem acontecendo com seu amado Fidel Castro, não mudará em nada o curso previsto do destino nacional e continental. Uma revolução só se detém por meio de uma contra-revolução, e esta, ressalvados os planos ignotos da Providência Divina, não acontecerá. O assunto, por excesso de previsibilidade, é bastante desprovido de interesse. Muito mais interessante, superlativamente interessante, é o próprio sr. Kotscho. Este sim é um mistério. Segundo as resenhas, ele diz que ouviu as conversações mensaleiras com a maior ingenuidade e distração, nas nuvens, sem entender nem tentar entender coisa nenhuma, e só três anos depois descobriu do que se tratava. Estou ansioso para saber como o autor do livro explica tamanha indiferença, tamanha pasmaceira, tamanha incuriosidade num narrador que já desde o título se define a si mesmo como uma alma de repórter, e que aliás, naquela ocasião, exercia as funções de assessor de imprensa do sr. presidente, cabendo-lhe por dever de ofício acompanhar os passos do chefe e, evidentemente, informar-se do que ele estava fazendo. A mim a situação me parece tão inverossímil, tão incongruente, tão forçada, que não vejo a hora de saber como o autor se sai de tão espinhosa dificuldade narrativa. Espero, pelo bem dos seus atrativos literários, que ele não tenha se safado da encrenca pelo expediente fácil de fingir que não a percebeu. Se ele fez isso - e só a leitura do livro pode tirar essa dúvida -, não poderei deixar de me perguntar se ele foi discípulo ou mestre do sr. presidente da República na arte da desconversa, e qual dos dois superou o outro ao praticá-la no tocante aos planos do mensalão. Mas não posso impedir que, mesmo antes de elucidado esse ponto, uma nação ávida de esperanças ao ponto de inventá-las do nada se apegue ao sr. Kotscho como a seu novo anjo protetor, recolhendo-se sob as suas asas até que o vento lhe leve as penas, como tem levado as de todos os seus antecessores. Nota do Editor: Olavo de Carvalho é jornalista e filósofo nascido em Campinas, Estado de São Paulo, em 29 de abril de 1947. Tem sido saudado pela crítica como um dos mais originais e audaciosos pensadores brasileiros. Professor de filosofia e diretor do Seminário de Filosofia do Centro Universitário da Cidade (RJ). Autor das obras "O Jardim das Aflições" e "O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras". Editor do site Mídia Sem Máscara.
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