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Crônicas
12/08/2006 - 06h25
Quem sabe?
Andréa Laurindo
 

"O futebol é o desporto coletivo mais praticado do mundo. É disputado por duas equipas, de 11 jogadores, que têm como objetivo colocar a bola entre as traves adversárias, sem usar mãos e braços", essa definição dicionária era o mais próximo que ela havia chegado da "paixão nacional". Assim com as novelas, os grupos de axé, os hits de verão e as revistas de celebridades, sua visão sobre o futebol era "um entretenimento barato, alienante e que não fazia a cabeça pensar". Alta, magra, nem bela, nem feia, mas com um perfil helênico, considerava-se distante dos modismos e frases feitas, de tudo que não fosse intelectual.

Foi criada dessa forma. Em sua casa não entravam livros que não os clássicos. A TV era um objeto de decoração usado apenas para programas educativos. Palavrões e gírias: banidos. O olhar repreendedor da mãe a impedira de admirar ícones comuns na adolescência. Não fora uma infância triste. Dir-se-ia apenas que fora rígida. Os valores de um pai filósofo-existencialista-obcecado e de uma mãe marxista-feminista-psicóloga eram suficientes para que seu vocabulário inibisse os primeiros namorados. Mesmo adulta, carregava a influência dos ritos familiares: leitura obrigatória, nenhuma diversão inculta, afetações mínimas. Por obra divina, conseguiu amigos que compartilhavam algumas de suas tendências. Sentia-se inebriada pelos papos inteligentes, regados a jantares gastronômicos, nos quais era admirada pelo conhecimento e riqueza de cultura. No fundo, ela sabia, não passava de uma jovem solitária ansiando por amizade e - dizia isso sussurradamente para não se tornar uma convicção - de uma grande paixão.

Quem sabe naquela cidade nova, um Rio de Janeiro banhado pelo mar dos poetas, pela baía de sol poente! Quem sabe ali, onde tanta gente sorria, a praia tranqüilizava e a vida pulsava. Há pouco mudara. Durante várias semanas concentrava-se no corriqueiro: acostumar-se ao novo emprego, ao ritmo da cidade, a reconhecer os locais, evitar os perigos, a escolher a melhor padaria, a entender o léxico regional. Pela primeira vez em sua vida, passou vários dias sem "cultivar a intelectualidade e o conhecimento". Quando se deu conta disso, pensou haver quebrado uma promessa e virado mais uma que acorda-trabalha-recebe-paga-come-dorme.

O peso no coração a expulsou do apartamento. Era uma grande vilã de si própria, exigente, arrogante com suas expectativas. Caminhava pela praia, distraída com os últimos dias. Estava quase concluindo como o ócio é doce, quando uma bola, lançada pelo zagueiro, escapou do gol e lhe acertou a face. Para tristeza dos espectadores locais, quase caiu. Evitou essa cena burlesca segurando numa árvore. Apesar de tonta, percebeu que meio time vinha ao seu encontro. O grande culpado da situação rapidamente segurou-lhe a mão e, desculpando-se, sentou-a num banco. Apressou-se em pegar gelo na barraquinha da esquina e insistiu em acompanhá-la até em casa. "Olhe sou fisioterapeuta", lhe dizia, "sei que uma bolada dessas pode traumatizar, além disso, nosso jogo já acabou". Não se sabe se ela aceitou porque estava abobalhada ou porque simpatizou na hora com o fulano.

A caminhada foi curta, mas serviu para realçar traços diferentes daquela figura: alto, bem carioca, físico cultivado na orla marítima em diversas peladas; seu acompanhante era um homem atraente, embora não fosse seu tipo. Certamente, pensou, deve ter namorada e um monte de admiradoras. Conversaram banalidades, de onde ela era, o que fazia, se estava gostando da cidade etc. Talvez por conta da profissão, ele transmitia confiança, era fácil de se conversar. Ela ficou alegre ao descobrir que eram vizinhos de prédio e, quando chegou à porta de seu apartamento, convenceu-se que seria educado convidá-lo para um "cafezinho."

Pela primeira vez um par de chuteiras adentrava aquele ambiente repleto de Dostoievskis, Emersons, Joyces, Manns, documentários e discos clássicos. Inevitável pensar que o objeto não combinava muito com a decoração. E naquele cenário - quase sem querer - partilharam com o coração suas aspirações, impressões, idéias. Transpiravam afinidades: a política, um mal necessário; o brasileiro, um privilegiado; o Rio, a cidade mais bela do mundo; a família, nem sempre uma influência benéfica. As incompatibilidades os faziam curiosos. Porque a paixão pelo futebol? O que lhe interessava num livro dessa grossura? De pergunta em pergunta descobriram-se: ela tímida, ele expansivo; ela uma intelectual, ele um trabalhador do corpo. Era quase madrugada, quando se despediram.

Cada qual em sua casa - como nas cenas das comédias românticas - apegava-se à lembrança do outro. O olhar inebriado de ambos, fixo no teto, confirmava: haviam se apaixonado. Pouco antes de adormecer ela já gostava de futebol. Ele decidia-se: amanhã vou lhe pedir um livro emprestado. A partir dessas decisões, o romance entre os dois fartou-se de momentos bonitos. Talvez fosse o Rio, o mar, o calor, as atividades ao ar livre, as opções culturais, os jogos no Maracanã, os shows, ou tudo aproveitaram juntos. Mas a verdade é que, em pouco tempo, ela descobriu-se torcedora quase fanática e ele passou a reconhecer os grandes escritores, filósofos e músicos. Mergulharam um no universo do outro e superaram as situações de ciúmes, as intervenções dos amigos e dos familiares. Fizeram de sua paixão um exemplo do que pode ser belo e duradouro. Culpa daquela bola perdida. Será que aquele encontro inusitado teria virado essa história de amor, se ele não fosse maníaco por futebol, se ela não fosse neurótica pela cultura? Se não estivessem no Rio de Janeiro. Quem sabe?


Nota do Editor: Andréa Laurindo é jornalista.

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