Convivem em nós dois impulsos, duas tendências, duas formas de viver. De um lado somos gregários, buscamos a companhia de outros; de outro lado, queremos privacidade, separação, isolamento. O primeiro impulso nos leva a ter vizinhos; o segundo nos causa problemas com os vizinhos. Ah, os vizinhos. Notem este diminutivo. Ele deveria ser carinhoso, mesmo porque, como diz o Novo Testamento (Mateus, 22:39), é preciso que amemos nossos vizinhos como a nós mesmos. É claro que no tempo de Mateus não existia o condomínio, que, para muitas pessoas, é uma fonte de atrito; mas é certo que o vizinho é, antes de mais nada, um amparo, a pessoa a cuja porta batemos para pedir ajuda. Há uma antiga música francesa cujo tema é exatamente esta situação. "Au clair de la lune", ao clarão da Lua, um vizinho bate à porta de Pierrot, com um pedido: "Prête-moi ta plume, pour écrire un mot", empresta-me a tua caneta, para escrever uma palavra: ou trata-se de uma vocação incontrolável de escritor ou o cara é chato mesmo (hoje em dia ele pediria o laptop emprestado). Mas suas carências não param por aí. "Ma chandelle est morte", choraminga ele, "je n’ai plus de feu": a vela se extinguiu, ele está no escuro, e aí brada: "Ouvre moi la porte, pour l’amour de Dieu." Pergunta: no lugar de Pierrot, o leitor ou a leitora abririam a porta? Pois esta é a questão, colocada sobretudo pela época de temores e suspeições em que vivemos. Quando eu era menino, no Bom Fim, os vizinhos não eram só vizinhos, eram uma grande família. Todo mundo entrava na casa de todo mundo, a qualquer hora do dia ou da noite, para um papo informal, para uma sessão de fofocas. A noção de privacidade simplesmente não existia, e na nossa casa, por exemplo, a porta sequer tinha chave. Os tempos mudaram e surgiram circunstâncias que trazem potenciais problemas para a convivência. Uma delas: as cidades modernas têm a tendência a nos empilhar. Nos prédios, temos o vizinho de porta, mas temos também o vizinho de cima e o de baixo. Lajes de concreto separam as pessoas, e o fazem com eficácia, mas não são à prova de som. E se o som consiste em torrentes de decibéis jorrando de alto-falantes, por exemplo, ou de alguém andando de salto alto (Deus, como o salto alto faz barulho) certamente há uma confusão em potencial. Surgem as reclamações, as brigas. E às vezes a represália, que, pelo menos num caso foi original. Aconteceu em Pelotas, com um homem que morava no térreo. No apartamento de cima residia uma família com um costume peculiar. Aparentemente nunca chegavam a um acordo sobre a decoração do tal apartamento; todas as noites mudavam os móveis de lugar, num ritmo frenético e incansável. O vizinho de baixo reclamou o quanto pôde. Finalmente, resolveu tomar providências. Homem dotado de talento para a mecânica, construiu uma curiosa engenhoca, na qual um motor acionava uma espécie de longo pistão vertical. A extremidade deste era colocada no forro. Quando começava o empurra-empurra dos móveis, o homem ligava o motor e o pistão ficava golpeando o forro como se fosse um aríete - e advertindo aos vizinhos para pararem com a mudança. Se isso resolveu o problema, não sei dizer. Mas temos de concluir: ainda bem que não existiam motores elétricos à época de Mateus. Eliminada esta possibilidade de represália o jeito era mesmo amar os vizinhos. Inclusive os do apartamento de cima.
|