Isto aqui não faz muito tempo, mas, em certo sentido, é pura arqueologia. Meu namoro com Maria do Carmo não tinha completado nem uma semana, e ela cismou que eu deveria conhecer seu avô, que não saía mais da cama. Na primeira oportunidade, levou-me ao quarto dele, enaltecendo, como todos na família, a extrema lucidez daquele farrapo de noventa e nove anos de idade, que ainda era capaz de soerguer o punho esquerdo ao mais imperceptível solfejar do hino da Internacional. Uma manifestação ruidosa de falsa alegria tomava conta de uma platéia de desmiolados, que largavam tudo o que estivessem fazendo em casa para aplaudir freneticamente o patriarca. Quando Maria do Carmo apresentou-me a ele, quis ficar sozinho com nós dois no quarto. Deixou escapar um bocejo de puro enfado e expurgou o resto do pessoal dali. Súbito, num fiapo de voz, perguntou à neta: - Ele sabe da caixa? Ela sorriu meio sem graça, mas confirmou com a cabeça, e percebi que era outro de seus números domésticos. Eu não sabia de caixa alguma. Tranqüilizado com a resposta, ele virou-se na minha direção. - Ontem saiu aquela história. Olhei atônito para Maria do Carmo, ela colocou a mão em meu braço. - Vovô achava que era só uma invenção dos irmãos Grimm, mas depois começou a ver a história saindo. O jogo parecia forte. Julguei que devia dizer alguma coisa e arrisquei: - Que bom! O velho começou a tremer como um doido na cama, com falta de ar, e Maria do Carmo inclinou-se na direção dele, enquanto olhava para mim, fingindo contrariedade. - Não é nada bom, seu bobo - falou-me, como se estivesse ralhando com uma criança. - Vovô tem medo quando sai aquela história - e girou o indicador, próximo à fonte direita - É a que lhe causa mais medo. - Bem - respondi, tentando mitigar a mancada, - essa é justamente a única história que não conheço. Outra bandeira. O homem quase embarcou dessa vez. - Então ele não sabe da caixa - gemeu, encarando a neta. Ela entregou os pontos. O velho comunista, todo contente: - Vai, pega o livro na caixa, conta para ele também. Maria do Carmo fez o que o avô pedia. Apanhou na mesinha-de-cabeceira uma velha edição dos irmãos Grimm, que abriu automaticamente na página certa e começou a ler, pela enésima vez em sua vida: - "A chave de ouro". Num dia de inverno, a terra toda coberta por uma espessa camada de neve... O velhinho delirava, feliz, mijando-se todo de alegria. A Internacional e essa fábula linda com que os irmãos Grimm justificaram para sempre a contação de histórias eram o que ele queria levar para o céu dos socialistas, quando chegasse a hora.
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