De que você precisa para viver? De muito pouco, certamente. Quase nada. Bastaria o básico - em tese. De resto, sobram os supérfluos e as necessidades artificiais que a propaganda e a moda nos impõem. E é exatamente na busca desses "paraísos artificiais" que, muitas vezes, encontramos o inferno. Partirei aqui dessa premissa, digamos, "franciscana", numa tentativa de identificar uma das possíveis causas, não somente da corrupção - talvez a mais importante delas -, mas também de muitos tormentos, transtornos e infortúnios do homem moderno. O fotógrafo francês, Pierre Verger, homem de talento singular, oriundo de família abastada belga-alemã, morava, desde há muito, e já àquela altura da vida, aos oitenta e poucos anos, num casebre em um bairro popular da cidade de Salvador, na Bahia. À jovem repórter da TV que, estranhando como aquele parisiense, de origem endinheirada, tão talentoso e famoso, bem conceituado e destacado na sociedade baiana, vivia ali, naquela casa tão modesta, sem muitos móveis ou eletrodomésticos, Verger disse: - "Aqui, minha jovem, tenho tudo de que necessito para viver". Não, caro leitor. Não é necessário fazer voto de pobreza - como, por exemplo, fez o senador gaúcho Pedro Simon - para estar isento dos tormentos e tentações do arrivismo, que quase sempre leva à corrupção de valores e a outras transgressões da ética. Tampouco se deve enclausurar num mosteiro ou convento, e levar uma vida de renúncias e privações. Mas é prudente que se reflita um pouco mais sobre a filosofia de vida de homens como Verger e outros, e, assim - por que não? - renunciar à sedução da vida fácil e do consumismo desenfreado. Afinal, retomando a nossa premissa: necessita-se de muito pouco para se viver bem, condignamente - ou seja, com dignidade. Talvez esteja aí a palavra chave: dignidade. Certamente você não necessita para viver bem, ou para, melhor dizendo, levar uma vida digna, ter um carro último ano e modelo, repleto de acessórios, muitos dos quais você jamais usará e que poderia perfeitamente prescindir deles. Você não precisa, para uso doméstico, de um aparelho de som com 4.000 Watts de potência e cheio de recursos inúteis, de um sofisticado home theater ou de um relógio que resiste a 150 m de profundidade, se você só mergulha na praia ou, no máximo, na piscina do clube. Para estar bem vestido não é necessário que a roupa seja Lacoste ou M. Oficer - a etiqueta muitas vezes não é sequer percebida pelos outros. Por que se (pre)ocupar com tanta quinquilharia e/ou futilidade? Observe que não à toa os casos de corrupção envolvem, quase sempre, pessoas oriundas das classes médias. É raro vermos um pobre envolvido em desvios de verbas públicas ou em crimes outros contra o erário. Muito raro - não é mesmo? Os pobres, ou os de origem humilde, são, em geral, honestos. Então, poderíamos levantar a hipótese de que o arrivismo, mais presente nas classes médias, como já dito, é uma das principais causas da corrupção. E o que move esses alpinistas sociais senão a estranha compulsão/necessidade de possuir mais, de comprar mais e cada vez mais? Para esses, mais do que para a imensa maioria dos mortais, as necessidades são ilimitadas: deseja-se sempre algo mais. Muitas vezes, embora nem se dêem conta disso em seu ímpeto arrivista, rouba-se, mata-se ou morre-se por coisas, por "necessidades" absolutamente prescindíveis - desnecessárias, portanto. Aqui cabe assinalar um oportuno parêntesis. Como um efeito perverso e extremado de um agrilhoamento a um modo de vida, cuja sensação de pertencimento está irremediavelmente associada ao "ter" e ao "possuir", vem-se observando ultimamente muitos casos de pais de família que chegam ao paroxismo de, num gesto insano, tomado por um equivocado desespero, matar toda a família e em seguida suicidar-se. Alegam, em seus bilhetes de suicida, dentre outras coisas, que não suportariam ver a família passar por privações; não suportariam conviver com a possibilidade de não poder pagar as aulas de dança da filha adolescente ou as corridas de kart do filho. Preferem a morte, à perda de pequenos confortos e hábitos de consumo. Decerto que o caldo de cultura que se consubstancia na sociedade moderna, seja através da massificação da propaganda ou do culto ao consumismo, é, por demais deletério, estimulando e alimentando, num ciclo vicioso, o furor consumista na sociedade. Levando-nos, algumas vezes, inclusive, como vimos, à desgraça ou ao crime. Através de imagens sedutoras, a telinha parece nos hipnotizar com sua imperativa cantilena: "Compre! Compre! Compre! Compre!..." Se você não possui um tênis ou um celular da marca tal, você se sentirá como um "não-cidadão". Portanto, podemos concluir, não sem uma certa preocupação, o criminoso ou o infeliz "desgraçado" não é somente o outro, personagem de uma distante realidade. O corrupto, ou o que caiu em desgraça, e que nos chega enquadrado pela PF e na telinha da TV, na verdade, somos nós mesmos um pouco - ou, pelo menos, um nosso igual. Da mesma maneira como somos todos racistas e assassinos em potencial, somos, também, todos, corruptos em potencial - ou, pelo menos, contaminados pelo germe da corrupção ou mazelas do caráter correlatas. A simples consciência desse fato, associada à eterna vigilância, pode se configurar, sem dúvida, numa eficiente profilaxia contra essa verdadeira pandemia que hoje em dia contamina toda a sociedade. Já seria bastante alvissareiro se começássemos a partir daí. A partir da consciência do que (ou de quem) somos. Da consciência de que, no final das contas, necessitamos de tão pouco para viver.
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