Há cerca de duas semanas, perdi um grande amigo, um desses que nunca negam solidariedade e, após exaustivas buscas, além de sonhos recorrentes com a sua volta, não tenho mais esperança de reavê-lo. O gato chamava-se "Travolta", era amarelo, gordo, amoroso, inteligente e felpudo como uma estola, ou assim me parecia durante o sono circular, quando se enrodilhava em si mesmo, sem começo nem fim. Durante 10 anos ou pouco mais, ele se escarrapachou sob a mesa da sala, enquanto eu escrevia madrugada adentro até o sol corroer a sutil sintonia que nos mantinha silentes, em profunda comunhão de espíritos. Mas, acabou. E, tanto quanto pude me informar, seu destino foi a panela de gente que aluga quartos nos decadentes casarões desta parte antiga do centro da cidade. Gente do campo, da periferia - caçadores! Não são famélicos de jeito nenhum, nem criaturas perversas, mas uma espécie que eu desconhecia: vivem da caça noturna em plena cidade, apesar da enorme oferta de alimentos nos mercados das redondezas. Ratos e gambás não lhes escapam; muito menos, gatos - ainda mais o meu, bem nutrido, manso, bobo, que se aproximava sem suspeitas de quem o chamasse para uns afagos, sempre feliz, de rabo em pé. Criado num ambiente harmônico que ele ajudou a instalar, não podia supor o perigo logo ao lado e, apesar de raras vezes incursionar até a rua, lá desapareceu; vítima, na certa, de alguma habilidosa cilada. Às vezes, manhã cedinho, avisto da janela alguns desses caçadores indo para o trabalho. São gente de aparência decente e confiável, camisas bem passadas, tagarelas e alegres, mas sempre no limite da discrição. Não fossem discretos e alardeassem seus hábitos alimentares, na certa sofreriam algum tipo de pressão. Assim, quietos, não deixam pistas, o que torna cada um deles ainda mais sinistro, do meu ponto de vista. Imagino vinganças que amedrontariam o próprio Calígula mas nada farei, que não me permito. Restam a dor irremediável e a descoberta, o repentino espanto: "Travolta" desapareceu numa noite de sábado! Nota do Editor: Daniel Santos é jornalista carioca, 54 anos. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
|