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Crônicas
12/09/2006 - 05h26
Carteirinhas e carteiraços
Luiz Martins
 

Saí para a rua naquela tarde, com todo o entusiasmo juvenil, a caminho de minhas "investigações". Era isso, eu estava nos primórdios do ’meu’ jornalismo investigativo. Havia recebido uma pauta: ’levantar’ tudo sobre uma suspeita de crime contra a economia popular.

Em plena ditadura, um cidadão chamado Lenine, em plena Capital Federal, decidira, por iniciativa própria e, portanto, à revelia da então todo-poderosa estatal Banco Nacional da Habitação (BNH), formar uma cooperativa e demonstrar que era capaz de oferecer, por meio de prestações insignificantes, melhores condições para aquisição de casa própria.

Foi fácil localizar o escritório da ’poupança popular’, as filas das pessoas de boa fé eram longas. Aliás, nesse mundo, a fila dos viventes crédulos é sempre grande, às portas das igrejas, às portas de qualquer proposta que acene com a democratização de um direito fundamental, avalie-se o de morar. Isto me lembra um certo filme institucional que assisti, certa vez, sobre a condição dos palestinos, e que dizia: um pássaro tem sua casa; tal animal tem sua casa; tais pessoas têm sua casa; os palestinos não têm suas casas (viviam em acampamentos); os palestinos não têm seu Estado... não tinham paz, não tinham um monte de coisas. E os brasileiros, pensava, a maioria deles não passa de uma legião de refugiados, exilados em sua própria Pátria, sem isso, sem aquilo, sem casa própria. Dizem que brasileiro gosta de televisão, de telefone... O brasileiro gosta de muita coisa, mas, antes de tudo, o brasileiro gosta de uma casinha e, claro, como tripudiava um certo comediante, para depois fazer um puxado... "coisa de pobre".

Pois bem, cheguei ao local, peguei o elevador, desci de frente para uma certa sala comercial e toquei a campainha, ansioso para ir logo me ’candidatando’ a um plano de casa própria e, na verdade, fazer a minha reportagem. Abriram. Achei que estava falando com o próprio Lenine, mas, a receptividade não foi nada boa, ao invés daqueles salamaleques usuais, bom dia, como vai, vá entrando, água, cafezinho? Recebi foi aquela mal-humorada ordem: "Documento!".

Ora, eu que imaginava começar minha identificação preenchendo um formulário de candidato à casa própria, levei um tempo constrangedor para localizar em algum bolso do meu prosaico primeiro blazer azul-marinho de repórter iniciante a minha carteirinha de jornalista. A irritação do homem - que, logo percebi, não tinha cara de nenhum Lenine -, foi crescendo à medida da minha atrapalhação em achar a tal da carteirinha, afinal, era uma identidade "válida em todo o território nacional" e com uma inscrição em vermelho: "Jornalista". Foi aí que veio o carteiraço e a lição de ligeireza no saque das carteiras:

- É assim que se identifica! Polícia!!! - Exibiu na velocidade de duelista de filme de bang-bang aquela pomposa carteira de Polícia Federal.

- Jornalista! - Contra-ataquei, com atraso, mas, inaugurando um hábito que, carrego comigo, até hoje, quase transformado em sestro, não posso ver polícia, guarda de trânsito, vigia noturno, ou qualquer confusão que me vem pela frente, que já vou sacando, com uma destreza olímpica, algum tipo de recorde jamais indexado nas inutilidades culturais do Guinness. Hoje, saco primeiro, exibo as letras vermelhas em diagonal, em caixa alta: J O R N A L I S T A. Da última vez que fiz isto, numa blitz, dessas de barreira de estrada federal, quase fui maltratado, o guarda achou que eu estava, literalmente, lhe aplicando o famoso carteiraço intimidatório, se é que alguém nesse mundo imundo de imoralidades ainda se intimida com a presença de jornalista.

Sou de um tempo em que carteira de jornalista servia para alguma coisa, para se aproximar de uma cena de crime, desastre, acidente etc. e fazer perguntas, tomar notas, ombro a ombro com a polícia, com a perícia e por aí vai. Na Europa, por exemplo, de museu em museu, não encontrei um que se recusasse a me abrir alas, gratuitamente. Sequer me perguntaram que veículo me empregava, se estava ali, de fato, trabalhando ou se de passagem, turista acidental. É impressionante como em algumas cidades realmente cosmopolitas porteiros e porteiras são adestrados a abrir mecanicamente as portas, cancelas, guaritas e sei mais o que perante a apresentação de uma carteirinha de jornalista. Nesses tempos, viajava com uma carteirinha internacional da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), dessas com inscrições em várias línguas, tinha até russo, árabe etc. Numa dada circunstância, num país do mundo árabe, tive não só de andar com a carteirinha para saque rápido, em ritmo de kalachnikov, como também aprender a gritar com as mãos para cima: Sahafir! Ou seja, jornalista, em árabe.

Quem chega à minha sala de trabalho, num corredor monástico da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, depara-se com um quadro que fiz, uma espécie de ex-voto temático montado e emoldurado a partir da metade das carteirinhas e credenciais que tirei ao longo de algumas décadas da vida de repórter. Aprendi, no entanto, que carteirinhas e carteiraços nem sempre favorecem boas reportagens e boa convivência com as fontes. Aprendi que se você quer inibir um depoimento, pegue papel e caneta; e que, em algumas circunstâncias, tirar a carteira de jornalista do bolso pode significar ameaça, expulsão do local ou o costumeiro "nada a declarar".

Não sou favorável a falsidades ideológicas, nem câmera oculta, nem gravador oculto, nada de oculto, nem de se ocultar carreira de jornalista. Mas, convenhamos, em determinados momentos, dar carteiraço é espantar a lebre, é secar a fonte. Em outros, a apresentação da carteirinha pode abrir portas, legitimar o chamado "estrito cumprimento do dever profissional". Naquele caso da investigação do Lenine cooperativista de casa própria, salvou-me da prisão como suspeito ter achado a carteirinha no bolso do surrado blazer azul marinho, daqueles que a ’turma’ do Beirute (popular restaurante de Brasília) dizia que era ele que levava a gente para casa, depois de ’altas horas’. Serviu também para mostrar que eu era, ali, naquele momento de pretenso hipotecador de casa própria, persona non grata, a pessoa errada no lugar errado, no momento errado, ou, pelo menos assim foi o que entendeu o meu interlocutor, que não quis respeitar o meu direito de repórter de também ser investigador. Tanto, que logo me deu outra ordem, com a mesma rispidez da primeira:

- Retire-se, você está atrapalhando uma investigação.

Eram outros tempos. Tempos depois, por capricho do destino, fui certa vez honrosamente convidado para fazer uma palestra para um auditório cheio de policiais, quando pude contar esse caso da minha investigação interrompida autoritariamente por um deles. No intervalo, no coquetel, sem caneta, sem carteirinha, vários deles vieram me dizer que têm a maior admiração pelo trabalho do jornalista e que eles, se pudessem, publicariam, paralelamente aos inquéritos, bombásticas manchetes acerca dos crimes investigados. E eu, claro, retribuí: se pudesse, ao longo das minhas investigações de repórter, tinha mandado muito bandido para a cadeia, inclusive, uns certos colarinhos-brancos, desses que se a gente não se cuidar bate a nossa carteira, a outra, não a de jornalista.


Nota do Editor: Luiz Martins da Silva, 55, jornalista desde 1975; professor do Departamento de Jornalismo da UnB, desde 1988. Trabalha em vários órgãos de imprensa, entre eles, Jornal de Brasília, O Globo, Veja, Brasil Comércio e Indústria e Ciência Hoje.

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