12/09/2025  12h52
· Guia 2025     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Crônicas
25/09/2006 - 07h08
A sorte não telefona
Ronaldo de Souza
 

Faziam a fezinha na Mega Sena toda semana. Religiosamente, quarta e sábado. Nos outros dias da semana faziam planos. Quarta, Cadão bancava o jogo. Sábado era o dia de Dodô assumir o investimento, que é como chamavam o desembolso semanal dos três reais, a aposta mínima possível.

Escolhidos aleatoriamente, os números eram repetidos por várias semanas. Às vezes palpites saídos de um sonho, a placa do carro de um amigo ou a data de aniversário de uma das sogras. “Deus me livre e guarde, mas quem sabe pelo menos depois de morta ela me ajuda, aquela megera”, brincava Cadão quando se referia à falecida dona Eulália.

Segundas e quintas pela manhã, no escritório, aconteciam as análises, os comentários abalizados sobre o intrincado mundo das combinações numéricas. Construíam teses para explicar os resultados de fazer inveja aos gregos Arquimedes e Pitágoras. Era um tal de “dessa vez foi quase”, ainda que tivessem acertado apenas dois dos seis números mágicos.

Dodô deixava a cargo de Cadão a aposta na lotérica e conferência nos dias dos sorteios. Tinha coração fraco, dizia, para uma responsabilidade tão grande. “Fique tranqüilo”, o amigo repetia semanalmente, “se ganharmos ligo em seguida”.

Quartas e sábados, Dodô jantava atento. Na cozinha, assistia à novela mas os ouvidos caninos escutavam a sala, à procura do tilintar telefônico. Naquela quarta, ao despedir-se do parceiro, mais do que isso, do sócio, vaticinara: “É hoje. Treze milhões acumulados. Você vai me ligar”.

E o telefone de fato soou à noite, durante o intervalo da novela, na casa do pacato senhor Osvaldo, lá pelos lados do Tremembé. Marilda, a esposa, sem saber de tratos, prêmios acumulados, dezenas e sorteios, visto que sua vida era pedalar incansável, dia após dia, a sua velha Singer para vestir as clientes da vizinhança, atendeu e gritou: “Dodô, é o Cadão no telefone pra você!”

Bem que Dodô tentou se levantar e correr, mas as pernas bambearam. Ato contínuo, engasgou com a última garfada de carne-seca com abóbora que teimara em permanecer na boca. Cadeira para trás, desabou com seus quase 110 quilos rumo à lajota fria. A mulher, que voltava para a cozinha, arregalou os olhos, soltando um grito que ecoou por toda a casa. Ninguém acudiu. Estavam sozinhos. Agachou-se para socorrer o marido mas Dodô já não respirava. Saberia depois, já no velório, a causa mortis: infarto agudo do miocárdio.

Do outro lado da linha, Cadão ouvira o grito, o choro convulsivo e alguns minutos, não saberia dizer quantos, de um silêncio sombrio. De repente, uma voz, a de Marilda soluçando, reconhecera naquele momento, sussurrou: “Cadão, o Dodô morreu”.

Não conseguiu emitir um som sequer, gaguejar uma sílaba que fosse. Sentado no sofá da sala, Cadão não respondeu de imediato à viúva. Nem uma palavra de consolo lhe saiu da boca. Corroído pela culpa, uma certeza o tomava por completo: matara o amigo. O aviso de que a longa fila na lotérica o impedira de fazer a fezinha naquela quarta-feira era desnecessário.


Nota do Editor: Ronaldo de Souza é jornalista há 27 anos, iniciou carreira no Jornal do Brasil. Em São Paulo desde 1982, trabalhou no O Estado de S. Paulo, na Folha de S. Paulo e na editora especializada em publicações de tecnologia IDG. Em 1989 fundou a S2 Comunicação Integrada.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CRÔNICAS"Índice das publicações sobre "CRÔNICAS"
31/12/2022 - 07h23 Enfim, `Arteado´!
30/12/2022 - 05h37 É pracabá
29/12/2022 - 06h33 Onde nascem os meus monstros
28/12/2022 - 06h39 Um Natal adulto
27/12/2022 - 07h36 Holy Night
26/12/2022 - 07h44 A vitória da Argentina
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2025, UbaWeb. Direitos Reservados.