Faziam a fezinha na Mega Sena toda semana. Religiosamente, quarta e sábado. Nos outros dias da semana faziam planos. Quarta, Cadão bancava o jogo. Sábado era o dia de Dodô assumir o investimento, que é como chamavam o desembolso semanal dos três reais, a aposta mínima possível. Escolhidos aleatoriamente, os números eram repetidos por várias semanas. Às vezes palpites saídos de um sonho, a placa do carro de um amigo ou a data de aniversário de uma das sogras. “Deus me livre e guarde, mas quem sabe pelo menos depois de morta ela me ajuda, aquela megera”, brincava Cadão quando se referia à falecida dona Eulália. Segundas e quintas pela manhã, no escritório, aconteciam as análises, os comentários abalizados sobre o intrincado mundo das combinações numéricas. Construíam teses para explicar os resultados de fazer inveja aos gregos Arquimedes e Pitágoras. Era um tal de “dessa vez foi quase”, ainda que tivessem acertado apenas dois dos seis números mágicos. Dodô deixava a cargo de Cadão a aposta na lotérica e conferência nos dias dos sorteios. Tinha coração fraco, dizia, para uma responsabilidade tão grande. “Fique tranqüilo”, o amigo repetia semanalmente, “se ganharmos ligo em seguida”. Quartas e sábados, Dodô jantava atento. Na cozinha, assistia à novela mas os ouvidos caninos escutavam a sala, à procura do tilintar telefônico. Naquela quarta, ao despedir-se do parceiro, mais do que isso, do sócio, vaticinara: “É hoje. Treze milhões acumulados. Você vai me ligar”. E o telefone de fato soou à noite, durante o intervalo da novela, na casa do pacato senhor Osvaldo, lá pelos lados do Tremembé. Marilda, a esposa, sem saber de tratos, prêmios acumulados, dezenas e sorteios, visto que sua vida era pedalar incansável, dia após dia, a sua velha Singer para vestir as clientes da vizinhança, atendeu e gritou: “Dodô, é o Cadão no telefone pra você!” Bem que Dodô tentou se levantar e correr, mas as pernas bambearam. Ato contínuo, engasgou com a última garfada de carne-seca com abóbora que teimara em permanecer na boca. Cadeira para trás, desabou com seus quase 110 quilos rumo à lajota fria. A mulher, que voltava para a cozinha, arregalou os olhos, soltando um grito que ecoou por toda a casa. Ninguém acudiu. Estavam sozinhos. Agachou-se para socorrer o marido mas Dodô já não respirava. Saberia depois, já no velório, a causa mortis: infarto agudo do miocárdio. Do outro lado da linha, Cadão ouvira o grito, o choro convulsivo e alguns minutos, não saberia dizer quantos, de um silêncio sombrio. De repente, uma voz, a de Marilda soluçando, reconhecera naquele momento, sussurrou: “Cadão, o Dodô morreu”. Não conseguiu emitir um som sequer, gaguejar uma sílaba que fosse. Sentado no sofá da sala, Cadão não respondeu de imediato à viúva. Nem uma palavra de consolo lhe saiu da boca. Corroído pela culpa, uma certeza o tomava por completo: matara o amigo. O aviso de que a longa fila na lotérica o impedira de fazer a fezinha naquela quarta-feira era desnecessário. Nota do Editor: Ronaldo de Souza é jornalista há 27 anos, iniciou carreira no Jornal do Brasil. Em São Paulo desde 1982, trabalhou no O Estado de S. Paulo, na Folha de S. Paulo e na editora especializada em publicações de tecnologia IDG. Em 1989 fundou a S2 Comunicação Integrada.
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