12/09/2025  10h10
· Guia 2025     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Opinião
02/10/2006 - 09h09
O inferno de Ipojuca
Ipojuca Pontes - MSM
 
“Aqui, os fins justificam todos os meios” - nova inscrição do portal do Inferno

Com o corpo que Deus me deu (e, semana passada, no Hospital Copa D’or, quase tira), percorri, tal como Dante Alighieri na sua “Divina Comédia”, as profundezas do inferno. Tinha como acompanhante e guia, não Virgílio, o poeta latino autor da “Eneida” que levou Dante às portas do Paraíso, onde estava a doce Beatriz, mas o conterrâneo Augusto dos Anjos, o esquálido vate da morte, da dor e do sofrimento, cuja podridão humana servia para ele de evangelho, visto que julgava ter como “irmão mais velho o animal inferior que urra nos bosques”.

Diante do território governado pela figura do Demo, depois de cruzar um lago coalhado de sangue, encharcado de pernas, ossos e olhos esbugalhados, defrontei-me com um portal sinuoso, onde a famosa inscrição “Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate” (“Perdei toda a esperança, ó vós que entrais”) fora substituída por outra, em néon vermelho, que piscava:

“Aqui, os fins justificam todos os meios”. Olhei para os lados e foi então que dei de cara com os olhos fundos, de olheiras violáceas, do poeta Augusto dos Anjos, que, por sua vez, me encarou de modo enigmático. O autor do “Eu” disse apenas: “Venha”. Em seguida, depois de atravessarmos algumas vilas tristes e miseráveis, ocupadas por sonâmbulos e cadáveres vivos, chegamos diante de três monumentos formidáveis, que, no entendimento do guia, substituíam, na “Selva Selvaggio”, três feras misteriosas (a pantera, o leão e a loba) que guarneciam o espaço infernal de Dante, consideradas símbolos da disposição humana para a incontinência, para a bestialidade e para a malícia.

Ao ingressar no primeiro dos três monumentos do inferno, desdobrado em três círculos, atravessei corredores infindáveis, salas e auditórios imensos, todos tomados por legiões de sujeitos que carregavam pastas e processos, num vai-e-vem frenético, assustador e sem rumo certo. Assim como o meu guia, fui atraído pelo barulho intenso que provinha de uma espécie de sala de reunião, ambiente sinistro, em que fantasmas soturnos, entre goles de conhaque e em meio ao ar pestilento da fumaça de tabaco, discutiam incessantemente, agitando bandeiras coletivistas, uns agredindo os outros em nome da “fraternidade, igualdade e liberdade”.

Ali discutia aos gritos e palavrões, de um lado, substancial entourage formado por Marx, Engels, Robespierre, Marat, Sartre, Che Guevara, Carlos Prestes, Marighella, Lampião (como Robin Wood, um “bandido social”), o italiano Antonio Gramsci, um careca entroncado, de barba e cavanhaque, muito parecido com o fanático Lenin, acompanhado de Stalin, Léon Trostsky e, curiosamente, do positivista Augusto Comte, amante da ordem e do progresso; de outro, vociferava uma corriola “menos científica e mais romântica”, mas nem por isso de menor agressividade, composta por Rousseau, Proudhon, Fourier, Saint-Simon, Victor Considérant e, ora de um lado, ora de outro, o anarquista Bakunin, sempre agitando os punhos em direção de Marx, o pai do “socialismo científico”. Em meio à barafunda geral, Lúcifer aparecia vez por outra e jogava baldes de excrementos quentes sobre as cabeças dos fantasmas querelantes, para chamá-los à razão. Pelo que entendi, todos eles queriam a urgente transformação, “revolucionária ou reformista”, da sociedade. Coisa digna de nota: apesar da corcunda, da baixa estatura e da voz cavernosa, o “canto revolucionário e estratégico” de Gramsci, entoando a criação de um “novo senso comum transformador” e de um “Estado regulado”, ecoava sobre os demais.

“Eles são os mentores fantasmagóricos dos que habitam este lado do inferno” - disse o triste poeta do “Eu”, levando-me até um enorme salão, tido como o plenário do inferno. Ali a coisa não era de menor calibre. Em meio a numeroso contingente de inocentes úteis, e de figuras vaidosas e iletradas, oportunistas de todos os tipos e tendências corriam de um lado para outro, confidenciando, ao pé do ouvido de cada um, mútuos esquemas para arranjos de dinheiros fáceis e privilégios, enquanto num pedestal, um sujeito mais esperto, em nome da “inclusão social”, repetia as velhas e carcomidas fórmulas discutidas no salão pestilento em anexo, ao tempo em que exigia a votação do gravame de novos impostos sobre a horda indistinta de almas condenadas e sofredoras, que lá fora amaldiçoava, protestava, chorava e implorava pelo perdão e mais tolerância.

Das galerias, no alto, bandos de diabos conduzidos por Belzebu, trescalando a enxofre, espetavam com gigantescos tridentes os que falavam em “dinheiro não contabilizado”, “propinas” e “verbas contingenciadas”, arremessando, em seguida, bolas de fogo sobre o orador mais esperto. Os tipos vaidosos que presidiam a mesa do plenário infernal, também recebiam sobre as cabeças baldes de excrementos quentes jogados do alto por cães danados e enraivecidos, sob a regência de Caim, o primeiro assassino da espécie humana. Entre as lamentações e gritos, vez por outra os pares, lá embaixo, trocavam insultos, tapas e pontapés, enquanto outros debochavam dos conflitantes entre gargalhadas de pura ironia. Voltei-me para o meu acompanhante, cada vez mais macambúzio, e disse-lhe frase que encabeça um dos seus poemas mais conhecidos: - “Ah, hoje um urubu pousou na minha sorte”!

“Você ainda não viu nada” – respondeu o poeta-guia. “Vou levá-lo no monumento mais imponente, desdobrado em três círculos, onde o Príncipe das Trevas governa o inferno, mentindo sempre ou, quando não, prometendo resolver todos os problemas. Venha” – ordenou.

Obedeci. (Mas acabou o espaço e só na próxima semana trato do Imperial Príncipe das Trevas e da Mentira, um sujeito digno de atenção).


Nota do Editor: Ipojuca Pontes é cineasta, jornalista, escritor e ex-Secretário Nacional da Cultura.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "OPINIÃO"Índice das publicações sobre "OPINIÃO"
31/12/2022 - 07h25 Pacificação nacional, o objetivo maior
30/12/2022 - 05h39 A destruição das nações
29/12/2022 - 06h35 A salvação pela mão grande do Estado?
28/12/2022 - 06h41 A guinada na privatização do Porto de Santos
27/12/2022 - 07h38 Tecnologia e o sequestro do livre arbítrio humano
26/12/2022 - 07h46 Tudo passa, mas a Nação continua, sempre...
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2025, UbaWeb. Direitos Reservados.