Já não sei se sou eu quem puxa essa carroça ou se é ela quem me puxa. Dia inteiro arrastando essa caçamba cheia de trecos pela cidade, recebendo insultos de taxistas, de bacanas em carrões importados e de motoboys. Faça chuva ou faça sol, lá vou eu catando restos das latas de lixo e engolindo poeira e desaforo. Esse povo só me vê através do vidro filmado e não tem dó nem quer saber das minhas agruras.

Quem sou eu? Às vezes penso que sou invisível. É verdade! Sou invisível pro governo, pra sociedade e até pra minha mulher. Quantas vezes já ouvi ela falar pras vizinhas: “esse daí num fede nem cheira”. Êta descaso. Sofro mais nessas ruas que Jesus Cristo nas mãos dos romanos. Ele pelo menos só carregou a cruz por algumas horas e ainda por cima entrou pra história. Eu no máximo viro estatística. Sou da ralé, da classe E, E de esquecido. Só tenho história triste pra contar. História de misérias, de gente que já não tira os olhos do chão, de um mundo sem cor.

Ainda agora mesmo quase fui linchado porque parei a carroça na entrada da garagem de um edifício de escritórios, ali pras bandas do Itaim. O bacana buzinou, dei uma reclamada, e o homem me xingou de filho da puta, mandou eu me foder, o cacete a quatro. Vixe Maria! Parecia um louco. Como é que pode? Bem de vida, tremendo carrão, óculos Ray-Ban, e com essa raiva toda? Ou o homem é chifrudo ou tá cheio de papagaio pendurado no banco. Eu tô trabalhando, disse pra ele, e ele gritou: “e eu tô fazendo o quê? Passeando?” Vem caçar papelão pra ver o que é bom pra tosse.

Chifre e dívida nem chega a ser problema pra mim. Problema mesmo é arrumar o que comer pra alimentar os barrigudinhos que deixei lá na Heliópolis. Desce do carrão e vem sentir a mesma frustração que eu sinto quando tô arrastando a havaiana paraguaia pelas ruas e vejo os anúncios dos apartamentos de quatro quartos, um por andar, com piscina e até lugar pra pousar helicóptero. Me lembro do barraco 3x3, de madeirite, que mal cabe a gente dentro, sem água encanada, sem esgoto, metido em uma viela fedorenta da favela. Vida de merda.

Fico sonhando pegar um desses navios bonitos que os cartazes lá da marginal Pinheiros mostram. “Viaje pelo Caribe”, tá escrito. E a foto mostrando gente sorrindo, mulher bonita, drinque e o escambau. Bom pra mais de metro. Mas o mais longe que eu fui depois que cheguei do Norte foi a uma excursão pra Aparecida. E nenhuma das duas viagens era turismo. Do Norte pra cá tava fugindo da seca, da fome, do desemprego. Pra Aparecida fui rezar pra essas mazelas desaparecerem. Porque em São Paulo até agora, tantos anos depois, só me livrei da seca. A oração também não foi ouvida. Até nisso o pobre se lasca todo. Deve ter uma ordem lá em cima bem clara: pedido de Vip tem prioridade. Esse pessoalzinho de cabeça chata aí fica lá pro final da fila, deve de dizer o santo responsável pelo atendimento das chorumelas de ricos e pobres. E o cara, que deve ter nascido com o cu pra lua, vem me xingar só por causa de uma carroça mal estacionada. Vem descontar as neuroses em mim. Eu que não faço mal pra ninguém, a não ser pra mim mesmo. Mas é bom eu ir andando porque esse negócio de pensar na vida não dá liga. Deixa esse desinfeliz pra lá. Quem comeu calango tem medo de cara feia não. A fila anda, quem sabe um dia chega a minha vez.

Nota do Editor: Ronaldo de Souza é jornalista há 27 anos, iniciou carreira no Jornal do Brasil. Em São Paulo desde 1982, trabalhou no O Estado de S. Paulo, na Folha de S. Paulo e na editora especializada em publicações de tecnologia IDG. Em 1989 fundou a S2 Comunicação Integrada.