Nunca saio de casa sem alguns livros em minha mochila de dez tostões. Se é verdade que o brasileiro lê menos de dois livros por ano, como pretendem os resultados de uma recente pesquisa no assunto, acho que devo fazer a minha parte para melhorar o desempenho livresco dos meus irmãos de chão nativo. Mas não quero saber de programas oficiais nem de ongues; no máximo, uma ongue do eu sozinho, bancada pelo meu próprio bolso, com suas pequenas contas em dia e sem risco de malversação de dinheiro público ou privado. Para dizer tudo, não preciso sequer sair do bairro onde vivo; aqui há espaço suficiente para vários séculos de proselitismo literário junto aos seus moradores. De fato, como em todo o país, lê-se muito pouco em Marechal Hermes. Não temos livrarias. Temos apenas um sebo de calçada, atormentado em época de eleições pelos fiscais da prefeitura, e uma biblioteca escondida (sim, escondida) no Teatro Armando Gonzaga. Independentemente do que os nossos maus lidadores da res publica consigam inventar, na melhor das hipóteses, para incrementar políticas culturais de incentivo ao hábito de ler, a situação exige o nosso trabalho de formiga, que pelo menos terá a garantia da permanência e da honestidade intelectual, sem interesse ideológico nem eleitoreiro. Imaginem, só por um instante, todos os bairros do país com sua meia dúzia de promotores da leitura, gente do próprio lugar, tudo na maior espontaneidade, pregando sobretudo com o exemplo. Neste caso, até a literatura de sovaco é bem-vinda - o cara não lê mesmo, mas ao menos está ali com um tijolão debaixo do braço, ares de intelectual, aguçando a curiosidade do interlocutor com informações de orelhas e quartas-capas. Foi com um deles, por sinal, que passei a conhecer Joyce, Broch e Musil, só para ficar nos mais lancinantes. Quanto a mim, penso em restringir-me a uma única tarefa: o sebo de boteco suburbano. Como estou numa dureza de fazer gosto, minha idéia é percorrer os botecos mais freqüentados de Marechal Hermes com uma bolsa de livros usados. Quem quiser comprar compra, quem não quiser leva de graça - o importante é que leia ou dê de presente aos filhos, aos sobrinhos ou aos netos, e não se furte a um bate-papo comigo sobre literatura em geral, para azeitar os neurônios. Já conquistei muitos leitores em balcões de bar, quando mais novo e mais abusado. Hoje é até mais fácil. Ao contrário dos meus tempos de pinguço, tenho encontrado gente de todas as idades plenamente convencida de que a leitura é importante. Só falta o empurrão. O empurrão, e obras atraentes, no início. Encostar o estreante na parede com um livro cabeça é puro desserviço. Na verdade, não é preciso nenhuma forçação de barra. Há duas semanas conheci pessoalmente duas belíssimas companheiras de sítio internético. Pois lá estava eu com a minha mochila abençoada: uma ganhou um livraço de Clarice Lispector, a outra, uma coletânea com os melhores sonetos de Florbela Espanca. Tomaram uns chopinhos, pagaram a minha água tônica, e passamos duas ou três horas conversando sobre essas duas grandes autoras. Um pouco de boa vontade, e é tudo. Verbi gloria intacta.
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