De uns tempos pra cá, as ruas, muitas delas, perderam seu espírito encantador, porque... Inúmeras são as causas, desde a violência urbana até o individualismo e a competitividade que tornam as criaturas demais azedas e, portanto, imprestáveis para o prazeroso convívio com os seus. Guardo, por isso, muitas saudades da época em que jogava bola numa rua quase que só de pedestres, onde podíamos sentar ao meio-fio para conversar, enquanto pacíficos vira-latas abanavam os rabos à nossa volta e as janelas apinhavam-se de moças com lenços de seda na cabeça. Éramos uma só família, ou assim parecia. Além do mais, um sem-número de artífices vinham nos oferecer seus serviços: a velhinha das laranjas, o amolador de facas, o vendedor de pirulitos, o leiteiro... Mas desapareceram sem deixar pistas, embora vivam ainda na minha memória. Deles, destaco um certo faz-tudo que nos acudia, prestimoso e mais hábil que um ilusionista, fosse para descobrir em que ponto da parede começavam as infiltrações, fosse para reparar o salto de um sapato de mulher. Todo simpatias, pouco nos cobrava por seus impagáveis serviços. Devo a ele, exatamente, o cenário do meu primeiro romance, ainda nos verdes anos, quando toquei a mão da filha da vizinha, mas a lua, minguante, não favorecia meus impulsos de potro. E tudo terminaria por aí, se o faz-tudo não surpreendesse uma vez mais e... consertasse a lua! Isso mesmo. Enquanto eu e a moça confundíamos nossas mãos na incontida véspera do desejo, ele subiu ao telhado com retalhos de estanho e sua caixa de ferramentas. Matreiro como um caçador, aguardou que a lua passasse bem perto e, tão logo pôde, iniciou os reparos na minguante. Foram marretadas de ensurdecer o quarteirão, mais os parafusos e roscas que se perderam tilintando pelas telhas. Juntou gente pra ver. E viram no que não podiam crer: a lua resumida ganhou adendos, retalhos suplementares e, ainda maior que o espanto de todos, ela surgiu plena! O cenário proclamava o entusiasmo e dei, afinal, meu primeiro beijo. A moça e eu nos inflamos de suspiros e gorjeios. Para sempre. Nota do Editor: Daniel Santos é jornalista carioca, 54 anos. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
|