12/09/2025  09h53
· Guia 2025     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Crônicas
18/10/2006 - 21h33
O batismo da Jade
Chico Guil - Agência Carta Maior
 

Há muitos anos as pessoas inventaram um ritual chamado batismo, que servia para a criança dizer "Olha eu aqui, pessoal. Façam o favor de prestar atenção!".

Mas as pessoas complicam tudo. Como a maioria das cerimônias que nasceram com a melhor das intenções, o batismo também virou uma coisa. Para muitos, batizar significa dizer "Esta criança acredita em Jesus Cristo".

Você sabe quem é esse sujeito? Não. Você ainda nem sabe o nome dos teus pais!

Jesus Cristo nasceu há quase dois mil anos, no outro lado do planeta, um local chamado Oriente Médio. Foi um homem muito bom, dizem, tão iluminado que parece ter-se ofuscado com a própria luz.

Isso acontece com muitas pessoas. De repente elas começam a entender certos mecanismos da Natureza, ou certas engrenagens do comportamento humano, mas de um modo bem diferente do conhecimento considerado racional, ou "científico". E elas passam a fazer coisas estranhas. Muitas dessas pessoas são dadas como loucas e vão morar no hospício, uma casa grande onde todos os habitantes são considerados inúteis para o resto do mundo.

Jesus Cristo começou a fazer coisas muito diferentes. Por exemplo, pregava o amor entre os homens, quando a maioria deles agia como feras. Talvez Jesus estivesse louco, ou simplesmente iluminado, coberto de sabedoria. E isso pode ser perigoso. Quem perde o medo de olhar para dentro de si, e de enfrentar suas próprias sombras, encontra coisas mágicas, que não são ensinadas nas escolas. Descobre-se, por exemplo, que para ser feliz um homem não necessita mais que comida, cama e abraços. A partir de então, tal pessoa vive extremos de abismo e de plenitude. Mostra-se destemida, pois sabe que nada tem a perder. Então vai e faz o que é preciso ser feito. Jesus Cristo foi, falou, e fez, mas algumas pessoas não gostaram. Colocaram-no sobre uma cruz, pregaram-lhe os pés e as mãos e ali ele morreu.

Segundo os "cristãos", Jesus ressuscitou três dias depois. É claro que não estive lá para ver, e seria desonesto de minha parte dizer que acredito nesta história, pois ainda é humanamente impossível saber o que aconteceu dois mil anos atrás. Existem os registros escritos, mas os escritores às vezes mentem.

Jesus estava bastante famoso naquela época, e com sua crucificação a fama correu. Espalhou-se no espaço e no tempo, atravessou os continentes e os séculos. Suas palavras converteram-se em religião, que é uma crença coletiva em uma idéia.

A verdadeira religião é uma idéia vagante, dinâmica, que se transforma com o passar dos dias, como uma nuvem perfumada, que nos faz aceitar os mistérios do mundo, ajudando-nos a multiplicar nossas virtudes e a viver melhor os nossos dias. Mas essa religião é pouco praticada, senão por alguns desgraçados, que depois de mortos são denominados artistas, profetas e filósofos.

A religião da fé, da crença numa coisa única e imutável, é o maior e mais intratável problema da humanidade. Neste momento em que estou escrevendo, milhares de pessoas em redor do mundo encontram-se em lutas sangrentas para provar que sua idéia, ou sua fé, é a mais certa dentre todas as outras.

Com a fama que Jesus ganhou após seu desaparecimento, as pessoas começaram a achar que tudo girava em torno das palavras que ele dissera. Seu poder cresceu tanto que, quando uma pessoa nascia, os pais a batizavam "em nome de Cristo". Isso significa que essa criatura, ao ser batizada no nome daquele homem, torna-se uma cristã, uma pessoa que acredita em Jesus Cristo, mesmo que não acredite. Ou seja, a criança não tem sequer a chance de compreender quem foi o sujeito e já precisa aceitar as idéias dele. É ridículo. Pensando bem, é desonesto e, pior, é grotesco e cruel!

Admito que fui batizado em nome de Cristo. Meus pais são cristãos, e me batizaram nessa religião. Eles não estavam errados, filha, não pense que os culpo. Pelo contrário, eu os glorifico, pois sei que estavam pensando apenas na minha felicidade. Não tinham meios para contestar a religião, nunca o desejaram, por isso fizeram a coisa mais certa que estava a seu alcance. Meus pais nunca imaginaram que eu seria um desses sujeitos que passam a vida virando o prato para ver o que tem embaixo. E que, comumente, derramam tudo e passam fome.

Não queremos que você se torne algo que nem sabe o que é, por isso não te batizamos na religião cristã. Você é um ser em transformação, uma coisa volátil, que somente será definida na hora em que você quiser se definir.

Parece que estou tentando te aconselhar, mas sei que não posso fazer planos para a tua vida. Os planos serão teus, somente isso é o que posso pensar, em minha tristeza de pai. Se você tiver necessidade de crer em outra pessoa que não seja você mesma, que essa crença seja fruto da tua decisão.

Enfim, como já estávamos entediados com tanta gente querendo saber quando seria a cerimônia, reunimo-nos eu, tua mãe, você e os padrinhos para um almoço de batizado pagão ao lado de uma cachoeira. Aproveitamos uma viagem de meus pais. Eles sofreriam muito sabendo que a neta seria batizada num rio, não conseguiriam aceitar o convite para a festa e tampouco deixariam de sentir vontade de estar lá, participando do evento. Já me sentia culpado, achando que estava traindo-os, mas depois que a abelha picou tua cabeça, decidi me perdoar.

A picada aconteceu durante o almoço, alguns minutos antes de descermos ao rio. Foi um alvoroço, teu choro, uma correria, ninguém sabia o que era, até que tua mãe decidiu procurar no meio dos teus cabelos e lá estava o ferrão, latejando, vivo, ainda injetando veneno no courinho mole.

Apertei com a unha ao lado do ferrão e fui empurrando, até arrancá-lo. Muita gente desconhece essa técnica de tirar ferrão de abelha e faz o pior.

Logo após enfiá-lo na tua pele, a abelha tentou fugir. Pobrezinha, não sabia que estava condenada. Ao abandonar a vítima - você - ela perdeu grande parte do abdômen, que ficou junto com o ferrão, e com certeza acabou morrendo. Grudada ao ferrão ficou uma bolsinha de veneno, que tem um mecanismo bem ajambrado, uma bomba injetora automática. Depois que a abelha abandona o mecanismo no couro da vítima, a bombinha fica injetando o veneno e, se alguém tenta pegá-la, pronto, injeta tudo de uma vez. O jeito certo é empurrar para o lado, com a unha.

Achamos melhor levá-la a uma farmácia. Sabíamos tão pouco de você, talvez teu corpo fosse alérgico ao ácido fórmico, o "veneno" da abelha. Na estrada eu não via os outros automóveis, ia passando sem dar sinal, sem frear, e, por sorte, talvez por milagre, não batemos, não tombamos e nem morremos. No meio do caminho para a cidade já nos sentíamos aliviados. Se fosse caso de reação alérgica, em poucos minutos você estaria transformada num monstro.

Não quisemos mais ouvir falar em batizado. Os fiéis a Jesus Cristo ouviram a história e ficaram satisfeitos com o acontecimento, a confirmar a fé que eles querem preservar a qualquer preço, mesmo que o preço seja a dor de uma pequena. Não disseram nada, mas em seu riso velado havia uma expressão maligna.

- Viu só? Castigo! - pareciam dizer.

Na minha opinião científica, o que aconteceu foi que a Natureza resolveu te batizar de verdade. Você foi verdadeiramente batizada por uma abelha africanizada, gênero Apis mellifera.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CRÔNICAS"Índice das publicações sobre "CRÔNICAS"
31/12/2022 - 07h23 Enfim, `Arteado´!
30/12/2022 - 05h37 É pracabá
29/12/2022 - 06h33 Onde nascem os meus monstros
28/12/2022 - 06h39 Um Natal adulto
27/12/2022 - 07h36 Holy Night
26/12/2022 - 07h44 A vitória da Argentina
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2025, UbaWeb. Direitos Reservados.