Ele não tinha nenhum futuro, mas tinha um passado. O enterro dele era uma prova. Cismara em perseguir uma espécie de Santo Graal, numa obsessão que o destruiria, na qual chegou a desacreditar, mas permaneceu fiel a ela, "se o mundo está contra mim, eu estou contra o mundo" - frase que ele deixara numa das últimas anotações do diário que escrevia até pouco antes de morrer. Verônica tirou a chave da bolsa e hesitou um instante. Pela primeira vez entraria naquele pequeno apartamento sabendo que ele não estava ali. Deixara-o no Jardim da Saudade, hora e meia antes, num bairro muito longe da Glória. Quando perguntavam onde morava, ele dizia com um orgulho triste: - Na Glória. Com a decadência profissional, os amigos se afastaram, a mulher e as filhas o abandonaram. Quanto mais distante estivesse, melhor para todos. Foi nessa fase que ele se aproximou de Verônica. Os encontros casuais transformaram-se se não num relacionamento sólido - nada era sólido na vida dele - pelo menos numa cumplicidade. Ele confiava em Verônica. Verônica admirava a obstinação dele. Nem por isso ele deixou de ser solitário. Ele era solitário. Era e fazia questão de ser solitário. Há duas semanas ela não o via, estranhou a sua magreza, sua pele escurecida pela doença, quase colada aos ossos, os olhos sim, brilhantes ainda, talvez pela febre, talvez pela angústia de vê-la mais uma vez que - ambos sabiam - seria a última. Ele não conseguiu olhá-la com ternura. Fez um gesto em direção à mesinha-de-cabeceira. Verônica entendeu. Abriu a pequenina gaveta e nela encontrou a carteira que comprara para ele, quando se conheceram. Adivinhou que haveria ali alguma coisa importante para os dois. Não era dinheiro, a carteira não tinha nota alguma. Além do pequenino caderno de endereços, havia uma chave no fundo de uma das divisões de couro. Ela também conhecia aquela chave. Pegou-a, mostrou-a, ele fez um gesto com a cabeça, aprovando. Ele apertou a mão de Verônica com a força possível, olhou-a mais uma vez. Ela entendeu. Não fixou aquele rosto deformado pela doença, era uma forma de respeitá-lo, de dizer que o amava e o amaria sempre. * O trecho acima que abre o meu livro O Beijo da Morte me faz pensar na morte. Mas também pode ser o contrário: lembrei-me desse trecho justamente porque estava pensando na morte. Para ser mais precisa, estava pensando no direito de morrer em vida que a literatura dá. Li isso em Blanchot. E concordei. Porque morrer qualquer idiota morre. Aliás, estamos na vida para isso mesmo. Não importa quantas possibilidades nos sejam apresentadas, o fim será o mesmo para todos: a morte, que tem o seu momento próprio, que não aceita adiamento ou antecipação. A morte não se submete e é assim. Ponto. Fosse diferente, o suicídio resolveria tudo. Mas não resolve. Escolher a morte não significa alcançar o momento da morte, mas deixar uma vida em suspensão. E também não é o caso de clamar pela imortalidade, que de tudo é a pior opção. Trata-se de estar entre a vida e a morte, vítima de um acidente que não foi capaz de matar, mas também não permite viver. É por isso que escrevo, escrevo, escrevo e, a cada morte que atravessa meus escritos, sem desejar nenhum futuro e nenhum passado, peço à vida que me beije mais uma vez. Nota do Editor: Anna Lee é jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.
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