Diário de Perua
Anabel Serranegra achou bonito, adorou mesmo, ontem, o 2 de novembro, Dia de Finados e as tribos góticas que ganharam os cemitérios. Foi uma chance rara. Meio arredios, abrigados nas madrugadas e nos cemitérios, góticos quase não são vistos. Da paz e da cerveja, andam com a latinha pendurada, uma coisa assim meio punk, mas menos belicosos. Tribo classuda, não dá bandeira. Quem já ouviu falar de um deles metido em arruaças e espancamentos feito os carecas, os skin head, que volta e meia invadem noticiários policiais atacando pretos, pobres ou homossexuais? E por falar em homossexuais, que me perdoem meus inúmeros amiguinhos do ramo, mas uma das raças mais chegadas a um holofote é justamente a gay. Para variar, já estou embolando os assuntos. Foco, garota. Apesar de serem tudo de bom com suas cruzes, roupas pretas, faces pálidas maquiadas para parecerem a Mortícia Adams, os góticos têm pisado na bola. Tanto que os zelosos funcionários municipais de São Paulo fizeram ontem um trabalho de “conscientização” – o termo é esse mesmo, usado por um deles – da galera das trevas. Aproveitando a ocasião, também para eles muito eventual, seres diurnos pagos pela Prefeitura, abordaram os góticos para pedir encarecidamente que não pichem as estátuas. Flores e terços podem colocar a vontade, velas com algum cuidado, mas tinta vermelha nos olhos dos anjos e santos de pedra é demais. Se não puderem segurar a paixão pelo sangue fake, que a restrinjam a si próprios – gótico que é gótico se pinga de vermelho para fazer que está sangrando. Eu não pareço a Mortícia Adams, mas assim como ela, também já não tomo mais sol no rosto. Costumo dizer que estou em processo de mumificação, o que funciona sempre, todo mundo ri. E quando o filtro, ingrediente de minha cesta básica, ainda não está seco, fico com cara de teatro nô japonês – funciona também, todo mundo também morre de rir quando eu falo isso, me acham bacana e esquecem do aspecto de múmia. E só para encerrar a ego trip, minha maior identificação com a tribo é que eu também adoro cemitérios. De dia, é claro. Conheço a múmia de Lênin – a-d-o-r-e-i – e quase cai de joelhos no túmulo do Marx em Londres. Fui levada lá sob protestos, numa ressaca de meio-dia de um tempo pesado e quente, por incrível que pareça em tal canto, por um namorado irlandês que queria me fazer uma surpresa. A surpresa começou como susto de manhã, quando ele resolveu inaugurar o novo apartamento, com um café da manhã em minha homenagem, à moda da terra – dele, é claro. Na noite anterior houve uma festa que tinha de tudo, mas lembrava bem a Irlanda por causa da quantidade de uísque e cerveja, industriais. Pois com o estômago e a cabeça gritando tive de fazer honras a ovos e tomates fritos, salsichas, batatas, tudo isso preparado em fartas doses de manteiga e café forte, destoando da água rala habitual de tais terras, o que foi bom. Ao ser obrigada a caminhar sob protestos quando ele parou o carro para tal surpresa, eu também estava montada como gótica, com roupa preta, sapatos verdes, moda na época, fofos e chiquérrimos e um olho com o rimel todo borrado. Foi a maior emoção quando, depois de uma aléia linda – os cemitérios londrinos são o máximo, iguaizinhos aos parques deles, mas com túmulos – vi o cabeção do Marx em bronze numa parede de mármore preto com o dito “Workers All Over Land, Unit”. E um buquê de rosa fresquinho que uma mão piedosa e comunista, provavelmente, tinha deixado. Voltando aos colegas brasileiros, entre eles quase não há mauricinhos, a maioria é office boys, vendedoras, classe média baixa e jovem. Eles têm na verdade uma aura um pouco romântica, mais um ponto de contato entre nós, perua que se preza sempre descamba um pouco para o romantismo. E aproveitando a ocasião, vou fazer a propaganda da minha amiga Ana Eliza Colomar, musicista de mão cheia que toca violoncelo e flauta na peça o Retrato de Dorian Gray, outra peregrinação deles. No espetáculo que acaba nesse fim de semana, no Teatro Popular do Sesi, quando o Dorian vai ficando mais e mais malvado, ele vai assumindo um visual que o transforma num Laranja Mecânica (quem lembra?) gótico do século 19. A galera delira e volta várias vezes, com toda razão, pois Oscar Wilde, muito apropriadamente irlandês, é mesmo o máximo. Anabel Serranegra se encontrou muito também no Museu dos Escritores de Dublin, que tem coisas geniais do Oscar Nota do Editor: Maria Ruth de Moraes e Barros, formada em Jornalismo pela UFMG, começou carreira em Paris, em 1983, como correspondente do Estado de Minas, enquanto estudava Literatura Francesa. De volta ao Brasil trabalhou em São Paulo na Folha, no Estado, TV Globo, TV Bandeirantes e Jornal da Tarde. Foi assessora de imprensa do Teatro Municipal e autora da coluna Diário da Perua, publicada pelo Estado de Minas e pela revista Flash, com o pseudônimo de Anabel Serranegra.
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