No último sábado, fui dar uma palestra na Feira do Livro de Erechim. O secretário da Cultura da cidade, que me daria uma carona até lá, veio buscar-me cedo, antes das seis da manhã. As ruas estavam desertas, mas quando passamos pela Oswaldo Aranha, tive uma surpresa: dezenas de jovens circulavam por ali, animadíssimos. Evidentemente tinham passado a noite em algum bar ou numa festa. Oswaldo Aranha na madrugada não me era exatamente cenário desconhecido. Passei pela avenida saindo dos bailes do Círculo Social Israelita; fiquei andando por ali até o dia clarear, discutindo com meus amigos a maneira de salvar o mundo (encontrei várias, mas já esqueci todas). Ou seja: fui, como os jovens da madrugada de sábado, um noctívago. E devo dizer que lembro com saudade aqueles tempos. Existem os noctívagos e os diurnos. Não é só uma questão de relógio biológico, embora isto também exista: o organismo de algumas pessoas funciona melhor durante o dia, outras só começam a se animar quando o sol se põe. Mas existe aí também um jeito de encarar a vida. À luz crua do sol as coisas aparecem como realmente são, sem ilusões. Já aqueles que gostam de sonhar, que procuram escapar às amarras do cotidiano, preferem a escuridão ou, no máximo, a mágica luz do luar. Um exemplo típico é o do grande Lupicínio Rodrigues, que dormia de manhã, trabalhava um pouco à tarde e, à noite, cumpria religiosamente o ritual da ronda dos bares. Que eram conhecidos recantos da boemia, alguns de propriedade dos próprios músicos, como o apropriadamente denominado Gente da Noite, criado em 1975 por Lúcio do Cavaquinho e Túlio Piva, este autor de um notável samba chamado, exatamente, Gente da Noite: "Gente da noite / que não liga a preconceito / tem estrelas na alma / e a lua dentro do seu peito". E existiam também as chamadas casas de tolerância, que, em Porto Alegre, têm uma história antiga: já no século 18 havia um logradouro conhecido como Rua dos Pecados Mortais, depois Rua dos Sete Pecados (porque eram sete os bordéis). A Cidade Baixa sediava bordéis populares; famosa era a Rua Pantaleão Telles, e a Cabo Rocha, e a Voluntas. Os rapazes que não tinham grana para freqüentar a Mônica, ou a Marly, ou o Maipu, apanhavam as prostitutas na rua e faziam sexo no carro mesmo, em alguma rua deserta. De noite todos os gatos são pardos? Decerto. E de noite o espírito dos felinos se apossa dos humanos: o mundo povoa-se de gatos e de gatas. Todas as mulheres são misteriosas, todos os homens são conquistadores. Alguém já viu uma paixão nascer sob o sol do meio-dia? Talvez na praia, com biquínis sumários, mas, fora isso, é difícil. A noite, ao contrário, facilita a aproximação, as confissões, os sussurros. O problema com a noite é que ela termina. O sol, implacável, surge no horizonte: é a hora da verdade. E aí vem a pergunta inquietante: quem é esta (ou este) que está na cama a meu lado? O que será que rolou? Será que eu casei? (Num hilário conto, de Katheryne Mansfield, acho, a resposta é positiva, para desespero do protagonista). O Josué bíblico fez, com a ajuda do Senhor, o sol se deter no céu. Muitos boêmios gostariam de fazer o mesmo com a lua. Mas isto, infelizmente, só é possível depois de muitas doses de uma boa cachaça. A alternativa é fazer como a gente da noite de Túlio Piva, que "chora de saudade / quando a noite vai embora".
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