12/09/2025  07h05
· Guia 2025     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Crônicas
15/11/2006 - 10h02
O homem armado
Edmundo Pacheco
 

- Sabia que tenho uma arma? - indagou, de chofre, o homem alourado, em andrajos, já com a cabeça, os braços e metade do corpo dentro do automóvel.

Rubens teve um sobressalto. Teria tido um enfarte fulminante naquele instante se seu marca-passo não estivesse com pilhas novas. Pensou em indagar "O que eu tenho com isso?" e expulsar o rapaz dali, mas temeu...

Passou-lhe pela cabeça entabular conversa, perguntar como era a tal arma, qual calibre, onde comprara, quanto custara etc. Mas conteve-se. Não convinha brincar com estas pessoas. E o sujeito de cabelos desgrenhados e sujos não parecia disposto ao diálogo. Era seco: objetivo, como só os assassinos o são.

Permaneceu estático. Um sorriso amarelo congelou-se nos lábios, enquanto o cérebro fervilhava, naqueles seculares milionésimos de segundo, tentando encontrar a resposta adequada.

Não encontrou a tal resposta.

O sinaleiro abriu. Os carros atrás já gritaram pedindo passagem, enquanto o maltrapilho alourado continuava com meio corpo dentro de seu carro, esperando a senha adequada.

De um estalo Rubens compreendeu: tirou o relógio, a carteira e o dinheiro que tinha nos bolsos, carteira com cartões e talões de cheques e empurrou tudo em direção ao estranho. Observou que ele formava uma figura estranha e tétrica, com meio corpo dentro do carro, no lado do passageiro, em contraste com a luminosidade que vinha de fora.

Então era isso... Um assalto... O homem louro, aparentando não mais que 20 anos, queria dizer que estava armado e que queria tudo que ele possuía. Havia um erro claro de comunicação.

Era um assalto e o sujeito, certamente inexperiente na profissão, não soubera fazer o comunicado adequado. Erros de comunicação eram a especialidade de Rubens. Ele ganhara a vida identificando-os. Primeiro, como revisor, depois, como editor e agora como chefe de redação de um dos jornais mais importantes da cidade. Ninguém sabia mais de erros de comunicação que ele... 30 anos de profissão...

- Tome, é tudo que tenho...

Gaguejou o chefe...

O maltrapilho olhou-o estranhamente, como um cachorro que tenta entender o que o dono está dizendo... E, depois de uns dois séculos de confusão mental, reagiu indignado; empurrou a mão de volta com todos os pertences e vociferou:

- Você sabia que eu tenho um revólver?

Rubens sentiu suas forças de exaurirem.

As pernas começaram a pular de encontro aos pedais e os braços, laxos, penderam do volante.

O assaltante queria mais. Estava claro o sentido da insistência. E ele tinha um revólver... Certamente, não queria mostrá-lo à luz do dia, mas deixara claro que "tinha um revólver"... A entonação da voz, a ênfase em cada palavra, a sentença toda era clara, o sujeito tinha uma arma iria usá-la, caso não fosse obedecido.

O revólver estava certamente engatilhado, pronto para o disparo. Rubens sentiu o sangue gelar... Podia imaginar a bala esperando o momento certo... O disparo seco da pólvora empurrando-a de encontro ao ar. O sibilo. O estalo no peito. A dor lancinante. O sangue jorrando. O ladrão louro fugindo. As pessoas se aglomerando ao redor do carro...

- Coitado, tão novo! Arriscariam alguns.

- Coisas de cidade grande! Concluiriam outros.

Rubens soçobrou. Eram seus últimos instantes de vida sobre a terra. Nada mais tinha a dar ao assassino, e este, com certeza iria cumprir a ameaça.

Noticiara milhares de casos semelhantes ao longo de sua carreira: pessoas mortas de forma banal, por um trocado, num sinaleiro de cidade grande. Costumava rir da tragédia alheia, mas jamais imaginou-se naquela situação...

Descontroladas, ante o pavor da morte iminente, suas pernas continuavam a pular. Se o carro não fosse automático, teria dado um solavanco e apagado... As pernas descontroladas, poderia parecer sinal de reação? Não sabia a resposta. Ele que vivera todas as certezas, que era quem sempre sabia o caminho a seguir, agora não tinha certeza de nada... Sua barriga urrou como se tivesse com fome e um silvo úmido e quente encharcou o banco de couro do carro novinho...

Jamais pensara em terminar assim. Por certo não era o melhor exemplo dentre os mortais. Seus erros se enfileiraram ante seus olhos, cada qual ávido por ser escolhido o principal. Sua vida toda, agora, poderia ser revista, não num replay, mas numa ilha de edição linear digitalizada. Todas as imagens ali, prontas pra serem cortadas ou frisadas... E o assassino armado, estático ali ao lado, com o dedo indicador no gatilho iria ajudá-lo a editá-la. Poderia escolher o roteiro que melhor lhe conviesse. Era seu dono. Seu mestre. Seu amo. Ele tinha o revólver.

Rubens sentiu uma última fisgada no peito. Não soube se a arma disparara ou se o marca-passo falhara.

Antes que pudesse esboçar qualquer reação, o pálido homem à sua frente se esganiçou, estrebuchou arregalando os olhos e continuou esticando o braço direito em sua direção, ainda com seus pertences. Rubens tentou puxar todo o ar do mundo num último gesto egoísta, fechou um dos olhos enquanto arregalava o outro, e morreu.

Lá fora os carros continuavam a implorar passagem. O sujeito alourado, confuso, ainda tentou falar com o homem morto. Tentou esticar o braço para alcançá-lo, mas desistiu. Sujeito estranho, não dera bola pra ele. Ao contrário, tentara suborná-lo com relógio, carteira e coisas bestas e sem valor...

Saiu da janela, olhou ao redor, tentando compreender o que acontecia... A avenida larga, cheia de carros buzinando... Gente idiota, que não dava atenção a nada, caminhando pra cá e pra lá... Uma velhinha simpática cruzava a rua com uma sacola, logo à frente do automóvel... Poderia dar atenção a ele... Tentou abordá-la, mas, apressada, ela nem o notou.

O homem sujo e rasgado, com os cabelos louros compridos caídos sobre os ombros, ficou ali por alguns segundos, perdido. Olhando ao redor, sem saber pra quem contar a sua mais incrível novidade...

Cruzou a avenida movimentada de cá pra lá e de lá pra cá, quase sendo atropelado por outros carros. De repente o sinal contrário fechou e o alourado viu alguém que poderia compreendê-lo: do outro lado da rua um homem fumava um cigarro, tranqüilo, com as janelas abertas, enquanto aguardava o sinal.

Não teve dúvidas, cruzou a avenida correndo e, antes que o sinaleiro se abrisse, jogou-se janela adentro e sentenciou:

- Eu tenho um revólver!


Nota do Editor: Edmundo Pacheco é jornalista, 45 anos, editor-chefe da RPC-tv Guairacá (Guarapuava - PR) Afiliada Rede Globo.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CRÔNICAS"Índice das publicações sobre "CRÔNICAS"
31/12/2022 - 07h23 Enfim, `Arteado´!
30/12/2022 - 05h37 É pracabá
29/12/2022 - 06h33 Onde nascem os meus monstros
28/12/2022 - 06h39 Um Natal adulto
27/12/2022 - 07h36 Holy Night
26/12/2022 - 07h44 A vitória da Argentina
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2025, UbaWeb. Direitos Reservados.