Vai para cinco meses que voltei em definitivo, assim espero, à casa materna, tempo mais do que suficiente para convencer-me de que o nosso vizinho do apartamento de cima dorme, acorda e passa o dia inteiro com um martelo na mão. Vive arranjando o que martelar em algum canto, e já deu para ouvir que ele sempre volta, depois de um sistemático périplo pelos cômodos da casa, ao lugar de origem da primeira pancada do dia, como um autocondenado sísifo doméstico. Agora me digam... Dá para curtir Gustav Mahler - minha última aquisição - sob o compasso monofônico desse marteleiro implacável? Dá para tirar uma boa soneca depois do almoço? Dá para escrever em paz minhas crônicas com esse tum-tum diuturno? (Tum-tum ou tuntum? Como saber, se, ao que tudo indica, o Aurélio e o Houaiss não tiveram um vizinho desses?) Quando cruzo com o gaiato no saguão do prédio e ele me cumprimenta, habitualmente a contragosto, sempre dou um jeito de olhar as pontas dos seus dedos, sobretudo o fura-bolo e o polegar da mão esquerda, para ver se minhas preces foram atendidas. Nada, nada. Dedos longos, bem-feitos, e unhas impecáveis. Nem parece que aqueles dedos de pianista passam horas e horas grudados no cabo de um martelo, atormentando a vida dos outros. E o curioso é que esse desagradável súdito de Hefesto adivinha com absoluta precisão onde o cronista tenta refugiar-se nos momentos mais críticos. Uma tarde, só para tirar isso a limpo, enfiei-me no minicloset do meu quarto, sem avisar nem aos de casa, e lá me alcançou o ressoar do batuque infernal, pertinho de mim. Por autocrítica, sei que a mania do cara está influindo negativamente na qualidade dos meus últimos textos, e é isso que me apavora, pois tenho um nome a zelar no meu Galho de Arruda internético. Mas como exorcizá-lo? Falando com ele? Dedurando ele ao síndico? Não dá. Ex-guarda penitenciário, acostumado a lidar com gente braba, cara de mau até quando sorri, meu vizinho é mais monossilábico do que o Fabiano de Vidas secas. Para ser preciso, é um soldado amarelo de terno e gravata, tão intragável quanto o original. O jeito é esperar que o tempo faça com o martelo dele o que já fez com os aviões que chegam e decolam do Campo dos Afonsos, aqui perto. Nem os ouvimos mais, depois de toda uma existência com eles cruzando o verdadeiro céu de brigadeiro (*) de Marechal Hermes.
(*) Lamenta-se, no entanto, que durante as comemorações da última Semana da Asa, sob esse mesmo céu e nessa mesma pista de pouso e decolagem nacionalmente famosa, uma combinação de equívocos (parece que ainda sob investigação) tenha provocado a morte de uma criança e deixado vários feridos entre os que assistiam à exibição aérea.
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