Recém-formado em Medicina, inscrevi-me em um curso sobre o cuidado de pacientes terminais. Cuja abertura foi tão insólita quanto perturbadora: o coordenador perguntou-nos de que forma gostaríamos de morrer. Mas ninguém protestou: médicos sabem que morte é inevitável, que a imortalidade, Academia Brasileira de Letras à parte, é uma fantasia. Aliás, a ABL não promete imortalidade; seu lema diz Ad imortalitatem, rumo à imortalidade, o que pode ser uma bela metáfora, mas está longe de uma garantia. Por que, então, espalhou-se o termo "imortal"? Porque ele corresponde a um desejo não expresso de todos nós e que poderia ser realizado pela permanência através da obra literária. Coisa que Woody Allen não aceita: "Eu não quero ser imortal depois de morto", diz ele, "quero ser imortal agora". Como era de se esperar, o pessoal do curso almejava uma morte rápida e indolor: um infarto maciço, por exemplo, quebraria o nosso galho. Mas, e o próprio curso logo mostrou isso, esse não é sempre o caso. O progresso da medicina prolongou a vida, mas prolongou também a agonia dos moribundos, que não raro transcorre em meio a intenso sofrimento, para o paciente, para a família ou para ambos. Emerge daí o conceito de eutanásia, do grego "boa morte". A expressão foi criada no século 17 pelo filósofo inglês Francis Bacon para definir o "tratamento adequado das doenças incuráveis". Eutanásia é uma prática legal em países como a Holanda, mas é coisa controversa. Exemplo disso é o estranho doutor Jack Kevorkian, atualmente cumprindo pena numa prisão americana. Patologista, o doutor Kevorkian não apenas se oferecia para liquidar pacientes com um aparelho por ele inventado, como uma vez filmou todo o procedimento e exibiu-o na tevê. Não é de admirar que uma banda americana tenha o nome de A Câmara de Tortura do Dr. Kevorkian. Essas coisas prejudicaram a discussão de um problema sério e doloroso; mas não a impediram. O Conselho Federal de Medicina acaba de adotar resolução aprovando a ortotanásia, que, notem bem, não é eutanásia: não se trata de ativamente provocar a morte do paciente, trata-se de não prolongar a agonia. Não é, porém, uma decisão do médico; é uma decisão do paciente e/ou dos familiares. A decisão do CFM já está provocando polêmica. Ela mexe com as pessoas, contraria a imagem da vida como luta. Em versos famosos, pediu o poeta Dylan Thomas a seu velho pai: "Do not go gentle into that good night / rage, rage against the dying of the light": "Não te encaminhes comportadamente para aquela boa noite; protesta, protesta, contra a morte da luz". Um apelo a que todos faríamos coro; mas seria este o apelo de Dylan Thomas caso o pai estivesse sofrendo barbaramente? O CFM propõe uma resposta para isto, através da ortotanásia. Como disse a ZH o doutor Renan Moraes, intensivista, "essa é uma prática que já se faz hoje, principalmente quando temos convicção da irreversibilidade de alguns quadros, como o do câncer que não responde mais aos tratamentos". É preciso, portanto, encarar a realidade - e a realidade é a das nossas limitações: a limitação da medicina, claro, mas sobretudo a limitação do ser humano diante da finitude e do sofrimento.
|