A piazada do bairro da Belica reunia-se quase todas as tardes para ouvir Isaías tocar o violão de Tertuliano. Vinham as crianças e também alguns velhos, ficavam perdidos ali, na esquina, sentados em banquetes de toras improvisados, ouvindo a forte e encorpada voz de Isaías, que não fazia diferença entre Zezé di Camargo, Zé Ramalho e Raul Seixas. Para ele, o que importava era cantar, sonhando um dia estar sobre o grande palco, e lá embaixo a platéia inflamada... Eu passava sempre ali, em meus passeios de bicicleta. Isaías não cainhava o violão. Eu puxava algumas velhas de Chico ou Vinícius e eles ficavam me olhando, meio pasmados, como se o vizinho novo estivesse tentando vender um produto para o qual não adivinhavam qualquer utilidade. Mas quem canta sabe, o que importa é cantar. Isaías compreendia, sempre me cumprimentava com um forte aperto de mão e continuava entoando seu canto na noite que descia. Certa vez, Tertuliano mudou-se com a família para o Rio Grande do Sul e levou o violão. As alegres reuniões em torno do canto de Isaías ficaram na lembrança. Os rapazes continuam ali na esquina, fazendo alguns planos para o dia seguinte, mas já não falam do show, do novo disco, da nova estrela pop-sertaneja. Agora falam do emprego, ou da falta dele. As crianças e os velhos desapareceram, Isaías já não se encontra e a rua está triste. Pensei em fazer uma campanha para arrecadar recursos junto aos empresários da cidade. Hoje se compra com R$ 300,00 um violão de qualidade razoável. Mas ando apressado, sem tempo para essas coisas da arte. Como todo bom brasileiro, tornei-me um americano estressado. "Os americanos estressaram o mundo", diz minha mulher. Não há mais tempo para as serenatas, os encontros de cantorias, as rodas de viola. Segundo os últimos candidatos a líderes da nação, é preciso pensar na saúde, no transporte, na segurança e na educação. Existem na minha cidade aproximadamente 10 bairros. Se a prefeitura comprasse 3 violões para cada um deles, gastaria R$ 9.000,00. Como a arrecadação anual está em torno de R$ 25 milhões, gastaria 0,036% do orçamento com os violões. Como esses instrumentos costumam durar no mínimo cinco anos, dependendo do capricho do dono, a "moçada", como diz o Alckmin, a moçada teria arte quase de graça por muito tempo. E não custaria pagar um professor para passar ali nas esquinas, de semana em semana, dando uns toques nos jovens talentos sobre como fazer um acorde, como bater nas cordas, essas coisas. Na última eleição não vi um único candidato - a presidente, deputado, governador ou senador - falar em cultura, muito menos em arte. Todos falaram em trabalho, trabalho, trabalho! Nenhum falou em prazer! Parecem ignorar o quanto a arte transforma realidades, empresta brilho a vidas cinzentas. Ouvi dizer que o Gil fez um excelente trabalho frente ao seu Ministério. Onde? Quando? Quais foram os beneficiados? Uma parcela boa-vivã acredita que cultura é cinema, e lá se vão os milhões para os velhos fracassos de bilheteria. Outras centenas de milhares de reais vão para a produção de documentários que passam na TV Cultura e que pouca ou nenhuma gente vê. Nunca, nesta minha cidade de 50 mil habitantes, nunca vi uma única ação do Ministério da Cultura. Nenhuma, nunca! Jamais vi o Ministério distribuindo violões, pincéis e tintas. Reclamaram que o Lula criou muitos ministérios. Se eu fosse presidente, inauguraria mais uns dez. O Ministério da Arte de Gente Comum, o Ministério do Prazer das Pessoas, o Ministério dos Problemas Emocionais do Cidadão, o Ministério das Disfunções Sexuais, o Ministério dos Relacionamentos Pessoais, entre outros.
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