Um dos problemas mais palpáveis que o povo cubano enfrenta no âmbito informativo, é a falta de experts e profissionais que possam dar uma idéia da sociedade que habita atualmente o arquipélago. Conhecer a sociedade que tenta-se reformar é imperativo e, até agora, ninguém se ocupou seriamente do assunto. Os mal chamados cubanólogos, geralmente entrevistados na televisão e na rádio do exílio, não são outra coisa que indivíduos, a maioria das vezes, magistralmente desinformados. O espetáculo que dão é tão ridículo, que daria vontade de rir se não fosse a delicadeza do assunto. Por sua vez, em Cuba, vão juntos Cardeais e fariseus (governo e dissidentes), todos implorando o perdão e confiando na civilidade cidadã. Por um lado, temos estes politólogos experts em gozação que saíram de Cuba há tantos anos que quase poderíamos considerá-los como “estrangeiros”. São pessoas literalmente cultas, moderadas, democráticas e politicamente corretas porém, que ignoram a involução moral que afetou nossa população durante os últimos 47 anos de totalitarismo marxista. Entretanto, por mais que lhes contem os recém-chegados, não vale como tê-la vivido na própria carne e no nível do povo. Pelo outro, estão os acabadinhos de chegar, quase todos altos membros da nomenklatura stalinista e que, por vício político, crêem que o povo é uma massa de covardes lobotomizados que continuará obedecendo ordens, mesmo depois da morte de Castro. Nós que vivemos em Cuba durante os primeiros 30 anos da revolução, e em contato contínuo com o povo e suas necessidades vitais, contamos com um antecedente nada desprezível que os anteriores nem sequer reconhecem: crescemos na dupla moral junto aos que ainda vivem lá e, embora o sistema econômico no exílio nos tenha desativado, somos capazes de compreender os que ficaram em Cuba. Se Ivan Karamazov (de Dostoievski) tivesse aprendido as atrocidades sociais cometidas pelo regime de Castro em todo o mundo, jamais teria pensado no ser humano como um animal “artisticamente cruel”. Creio, antes, que teria pensado no sadismo dos cubanos para catalogar as atrocidades dos turcos na Bulgária. De acordo com uma fonte de toda minha confiança dentro do MINSAP (Ministério de Saúde Pública), 11% por cento dos homens jovens do país são os responsáveis por quase 89% dos atos violentos reportados à polícia. “Homens jovens” são aqui todos aqueles que tenham entre 15 e 30 anos de idade. Segundo esta mesma fonte, Cuba perdeu mais de 100.000 pessoas em homicídios (dados não publicados) nos últimos 47 anos. A causa – me explica esse psiquiatra – deve-se a que as pessoas tratavam de sobreviver às expensas, inclusive, de prejudicar o vizinho mais próximo. Mas de 80% dos jovens cubanos (incluindo ambos os sexos) fantasiaram alguma vez em matar as pessoas que eles detestam. A lista é encabeçada invariavelmente por Fidel Castro e depois por aqueles que lhes humilharam em público, membros do CDR (Comando de Defesa da Revolução) e as BRR (Brigadas de Resposta Rápida) e, finalmente, a seus rivais amorosos. A trágica experiência de Angola é um dos exemplos que permitem explicar como a revolução incutiu no povo que o genocídio humano é moralmente mais tolerável do que um assassinato passional. O boxeador Stevenson (herói desportivo de Castro, sexualmente impotente depois de um tratamento errado de hormônios) chegou a pôr uma bomba debaixo do carro do amante de sua esposa sem que o governo tomasse represálias contra ele. Pessoas tentando abandonar Cuba em uma embarcação roubada foram fuziladas sem piedade, enquanto que os sádicos das campanhas africanas eram condecorados e elevados à categoria de heróis. Lembremos os 3 negrinhos e os felizmente defenestrados irmãos De la Guardia. Se alguém cresce em um país no qual os novos vizinhos são impostos pelo governo à toda a vizinhança, nenhum deles nos será atrativo e muito menos simpático. Se alguém vai a uma escola onde o professor é manipulador e autoritário, essa pessoa se desenvolverá como um estudante grosseiro e oportunista. E se você cresce e conta com a evidência de que roubar é a única maneira de sobreviver, você acabará sendo um ladrão elogiado por sua própria família. E se você rechaça a submissão, cada vez lhe será mais difícil e perigoso continuar em liberdade. Enfim, se você chega a se dar conta da porcaria em que vive, a cada dia estará mais decidido a não produzir em benefício dessa sociedade que lhe delata. Portanto, o cubano não desenvolveu nenhum nível de ética e sua generosidade dista muito de ser uma dádiva de moralidade adquirida. Sobreviver é mais importante do que gozar e o cubano tornou-se um expert em se dar conta de que pode passar uma semana sem desfrutar do sexo, mas não sem um prato de comida. Simultaneamente, o auto-engano (praticado por um temor bem fundado durante mais de 4 décadas) é outra das razões que fez com que a moralidade seja cada dia menos atrativa, ou provoque ocasionalmente mais dano que benefício. Castro esteve quase 50 anos levando os cubanos a brigar entre si. Quantos irmãos como Caim e Abel você conhece? Eu conheço milhares, mas imagino que os cubanólogos da Rádio e TV Marti, não. E não sei só de Cains e Abéis, mas de Jacós e Esaús, de Edipos e Laios, de Micaelis e Fredos, de Frasiers e Niles, de Josés e seus irmãos, de Lears e suas filhas ou de Hannahs e suas irmãs, todos cubanos. Como se se tratasse de um catálogo humano de ódio e drama, é possível olhar hoje o povo de Cuba sem temor de nos equivocarmos. E não só de ódio nacional mas de ódio provincial, de ódio municipal, de ódio comunal, de ódio vicinal e até de ódio familiar. A que ponto chegou o desdém e a intolerância que aqueles fantoches que chamavam Camagüey de “república camagüeyana” foram os primeiros a aceitar dividi-la, em troca de uma parcela de poder e muitos deles ainda estão no Partido! E o que me dizem os do Oriente, ou os da outra imensa e hoje minguada cidade de Las Villas? O mesmo ocorreu com nossa família e nossos melhores amigos. Sem uma verdadeira possibilidade de considerá-los um tesouro pessoal frente às autoridades do dogma, ficamos até sem a sua companhia. Se uma única cachorrinha na Suíça fosse privada de seus filhotes antes do tempo que estabelece a lei helvética, uma multa insuportável para o salário cairia sobre o criador da maltratada criatura. Porém, quando centenas de milhares de mulheres em Cuba são privadas dos fetos que carregam em seus úteros, e quando isto se faz por decreto estatal, em vez de multiplicar em centenas de milhares as indenizações às vítimas, os observadores o consideram um “ganho social”. Assim é que o aborto veio a ser “normal” e chegou inclusive a ser defendido na Cuba de hoje. Pior, alguns advogam atualmente pela liberdade de uma macabra doutora que, se mal me lembro, foi na ocasião parte daquela política inumana. Chama-se Hilda Molina, porém na Argentina alguém a chama agora de “avozinha” e o exílio estremece de ternura. E é dessa maneira que o povo de Cuba vem sendo maltratado há 47 anos e quando você zomba de um povo e o humilha, o explora ou o obriga a viver nas condições mais miseráveis, pode ser que exista quem perdoe, porém sempre haverá alguém que não. Só as pessoas que não sofrem as ofensas acabam por perder sua compaixão, mas isso não quer dizer que consigam fazer desaparecer o desejo popular de revanche. No exílio, pelo contrário, todos temos a fortuna de viver em uma sociedade que funciona mais bem do que mal, e na qual ninguém quer se preocupar com o direito alheio nem minimamente porque, como na Suíça, a maioria do povo vive armado e tratar de mudar as coisas por capricho social, poderia levar o reformista a um atoladeiro muito feio. Então, o que acontecerá de imediato se o povo de Cuba se vir um dia sem Castro? A classe de oficiais médios (entre Capitão e Tenente-Coronel) seguirá as ordens de seus odiados Generais? O povo se juntará, de maneira pontual, para possíveis levantes locais nas casernas? E se as coisas escaparem de suas mãos, quantos arsenais há em Cuba à disposição do povo? Não estavam aí prontos para garantir a “guerra de todo o povo”? Se prestarem atenção, eu não questionei sobre a tendência à agressividade social porque creio que se trata de uma cidadania cuja metade está farta das denúncias e dos abusos que lhe tem infligido a outra metade, e os problemas de Cuba não são de testosterona (isto são problemas só de alguns cubanos na Suécia), mas de discriminação e extrema pobreza. Eu sei que os cubanólogos mais autorizados sonham com uma transição à espanhola, porém o povo cubano não é um povo ignorante e, por isso, a dou por descartada. Sei que os recém-chegados sonham com uma submissão popular infinita, porém tampouco, porque não creio que ao cubano acabado de chegar lhe pareça prazeroso que se riam de sua cara. O marxismo é um dogma definitivamente esgotado em Cuba e, portanto, descarto 90% de sua mal chamada dissidência. O país próspero que uma vez foi nossa pátria o adotou e rompeu, e a ambição de seus líderes os tornou déspotas totalitários e assassinos em massa. O povo vai aceitar que liberais do exílio convivam com os ex-comunistas reciclados? Minha opinião é que não. A crença de que a democracia é facilmente inserida em Cuba é uma utopia repetida até a saturação por ambos os tipos de cuabanólogos e “experts”. A triste verdade é que, apesar das “garantias” de que “só eles sabem os métodos que nos possam conduzir a uma democracia sem violência”, na realidade eles não têm a mínima idéia do que estão dizendo. Cuba está cheia de armas e o povo cubano sabe como usá-las. Com o ódio que existe em Cuba e com as armas que de imediato podem cair nas mãos desse povo, não faz falta nem o empurrãozinho mal intencionado de uma cizânia. Estou certo de que começar a matar e começar a construir balsas, será um exemplo de sincronização humana cientificamente desconhecido. O povo cubano leva quase 5 décadas exibindo uma agressividade seletiva (censurada) nunca antes vista em nossa história republicana. Negá-la, seria negar que na Cuba comunista não tenham existido atos de repúdio, encarceramentos arbitrários, abuso de poder em todos os níveis, roubos à mão armada por parte da própria polícia, violentações repetidas e seduções miseráveis a mulheres de opositores políticos, crimes de guerra fora de nossas fronteiras, abusos estatais contra os particulares, assassinatos de toda índole, interrupções de gravidez por interesses econômicos e desaparecimentos por causas políticas. Os meninos das escolas cubanas não necessitam de nenhum videogame agressivo para violentar suas professoras; necessitam, como qualquer outro indivíduo daquela população, só de mais uma dose de frustração. Em um e-mail trocado com o filho de Huber Matos eu lhe explicava que em Cuba é impossível predizer qualquer coisa com certeza, pois uma pesquisa é inviável. Em compensação, creio ser possível fazer alguma predição semi-estatística. Suponhamos que eu queira predizer o nível de agressividade do cubano e que para isso baseie meu prognóstico no grau de descontentamento e frustração individual que experimenta sua atual população. Então, vejo que há 80% que fantasia algumas vezes em matar alguém, e 11% que se encarregou de cobrir 90% da criminalidade nacional. O que resta? 9% de gente que eu dividirei entre homens (3.5%) e mulheres (5.5%) sem potencial violento, porém a maioria já é maior de idade. Se eu predigo que o cubano potencialmente agressivo habita no corpo de 91% de uma população capaz de apertar o gatilho e trato de entrevistar-lhes tantas vezes quanto deseje e aleatoriamente, o mais certo é que tropece com 91% de casos que me dêem razão. Então, estamos falando de um erro de 9% no nível de credibilidade para quando a figura agressivo-paralizante de Castro tenha desaparecido. Se a isto agregarmos que eu me criei 31 anos naquela barbárie e não sou um oportunista tratando de convencer alguém para que dê fundos econômicos para minha cruzada política, então não estarei muito longe da realidade. A pergunta adequada, entretanto, não é a que propus no título, porque não se trata de saber se haverá ou não agressividade após a morte de Castro, mas como faremos para detê-la. Nota do Editor: Carlos Wotzkow nasceu em Havana, em 1961. Graduado como técnico veterinário e mais tarde Ornitólogo, foi expulso de Cuba em 1992, após passar pela prisão de Villa Marista. Já na Suíça, onde vive até hoje, estudou ecologia humana, ética e deontologia no Swiss Hospitality Engineering Consultants S.A e Biologia Molecular na Universidade de Berna onde trabalha como pesquisador. Autor de vários artigos, conferências e dois livros, dentre os quais “Natumaleza Cubana”, com prefácio de seu amigo Guillermo Cabrera Infante.
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