Na Amazônia, prefeitos do interior sempre despertam desconfiança no caboclo. Pode ser até o mais bem-intencionado dos prefeitos, mas o caboclo tem sempre um pé atrás. Pouco vai a inaugurações e quando vai já vai pensando que na construção o prefeito meteu o pé pelas mãos. A comício, então, vai com pouco ou nenhum apetite cívico: "Vamos lá ver qual a mentira desse um", costuma dizer. Não se fia nem quando o candidato é parente. "Esse aí eu conheço de outros carimbós". A desconfiança vem de longa data, numa região secularmente esquecida, mas que já teve épocas áureas, como a da borracha, que legou a cidades como Belém e Manaus arquitetura e monumentos de primeiro mundo, com formas e ares parisienses e italianos enfeitando os rios. Mas no interior brabo, onde se extraía o látex, pouco ficou, a não ser a sensação do caboclo de que foi passado pra trás. Municípios paupérrimos, vilas e lugarejos só enxergam políticos graúdos de quatro em quatro anos. Mesmo o prefeito local pouco está por ali. Tem casa na capital ou numa cidade maiorzinha que a dele e justifica a ausência dizendo que está buscando verba pro município. O caboclo, claro, não acredita. A desconfiança é histórica. Não começou aí, mas, por obra da revolução getulista de 30, ao Pará foi nomeado interventor o general Magalhães Barata, considerado por seguidores o maior líder político que o estado já conheceu. Senador em 46, voltaria a governar em 55. Populista como o chefe, Barata entrou para a história por páginas de amor e ódio. Entrou também na desconfiança do caboclo, em estórias que se multiplicam e não acabam mais. Numa delas, conta-se que, querendo que a agricultura contagiasse a vida ribeirinha, foi a uma vila de pescadores e levou ao palanque carrada de botas e enxadas para, naquele lugar ermo, em meio a tarrafas e linhas de mão, conquistar novos lavradores. Para espanto dos amigos, um caboclo subiu ao palanque e de lá desceu com cara de contentamento, botas e enxada, não sem antes ser louvado em discurso de Barata como exemplo à Amazônia e ao Brasil. Barata não ouviu a conversa matreira que o caboclo travou com o compadre, ao voltar a seu lugar na platéia: - Então, compadre, vai virar agricultor, é? - Que nada, compadre. Vou tirar é muita minhoca. Depois que inventaram a reeleição de prefeitos, o caboclo pôde exercitar melhor o que mais sabe e gosta de fazer em época de campanha: desconfiar de candidato. Pode até votar nele, mas confiar nunca. Maior ilha fluvial do planeta, com seus 42 mil quilômetros quadrados que se estendem desde a foz do Amazonas, o Marajó tem doze municípios com populações muito pobres, mas ricas em desconfiança política. Do outro lado da ilha, Afuá é um desses municípios. Fica de frente, mas muito distante de Macapá, no Amapá, com o colossal rio Amazonas separando. Não tem ruas, mas pontes de madeira, umas maiores, outras menores. Pois foi lá que um prefeito em campanha à reeleição reuniu os moradores em comício e começou a fazer bravata com seus feitos. - Vocês, mais do que ninguém, sabem. Aquela ponte ligando a segunda ponte com a quinta ponte fui eu que fiz! Os caboclos aplaudiram. - E aquela outra ponte ligando a primeira ponte com a sexta ponte, obra de grande porte, também fui eu que fiz! Os caboclos aplaudiram. Aí, coitado, o prefeito pegou corda. - Pois se vocês me reelegerem e Deus me ajudar, eu faço é pra já uma ponte ligando Afuá a Macapá! Um caboclo gritou lá do meio do povo: - Assoalha toda esta merda logo! Não houve mais comício, não teve reeleição. Nota do Editor: Euclides Farias é jornalista, 48 anos de idade e 25 de profissão, exercida em O Liberal, A Província do Pará, Agência Nacional dos Diários Associados e Rádio Cultura. Atuou, como freelancer, na Folha de S. Paulo e Jornal da Tarde.
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