Dizem que discutir a existência ou não da vida após a morte é uma batalha perdida. Se existir alguma coisa, existiu e pronto: logo depois de batermos as botas, acordaremos em algum lugar, ou muito bom ou muito ruim. Em ambos os casos, porém, já estaremos em grande vantagem, afinal não é possível que exista um lugar muito pior do que lugar nenhum. Já, no caso de não acordarmos nunca mais, que é a teoria pela qual eu tenho certa simpatia, de nada teria valido ficar discutindo enquanto estamos vivos, uma vez que não vai dar pra chegar pra ninguém e dizer - Aí, tá vendo? Eu falei que não existia nada! Então, quando eu começo a perceber que a conversa está descambando para esses lados, eu tento me manter o mais neutro possível. Mas tem vezes que não dá. - Você acha que o céu existe? - O céu? É claro que existe. Olha aí em cima, que baita céu. - Eu não estou falando DESTE céu. - E de que céu você está falando? - Do céu, ué. Aquele céu que a gente vai depois da gente morrer. - Ah. AQUELE céu. - É, então. Você acredita ou não? - Hum. Para falar a verdade, não. - Não? - Não. - Mas... mas... então você acha que o inferno também não existe? Nessa hora eu já estava acendendo um cigarro. E pedindo aos céus que aquela conversa acabasse logo de uma vez. - É. Eu também não acredito no inferno. - Mas então, você acha que a gente pode tudo? - Pode tudo? Eu não falei que a gente pode tudo. Eu só falei que eu não acredito na existência do céu e do inferno. - Pois então. Se não existe nem céu nem inferno, quer dizer que não existe castigo pelas coisas ruins que fazemos aqui. - É, acho que quer dizer isso mesmo. - E, se não existe castigo, então a gente pode tudo! A gente pode matar. Pode roubar. Pode estuprar. A gente pode tudo! - É. Pode. - Mas... mas... se a gente pudesse fazer tudo isso, o mundo ia ser uma loucura. Todo mundo fazendo o que lhe desse na telha, ia ser o caos! - É verdade. - Mas então, como é que pode você não acreditar no céu e no inferno? - Pois eu não acredito exatamente por isso. - Por isso o quê? - Olhe em volta, rapaz. O caos já chegou! Aí eu apaguei meu cigarro no cinzeiro e, no meio da fumaça da última tragada, saí fazendo pose de entediado. Tudo bem. Eu fui meio melodramático. Mas tem hora que a gente tem que apelar.
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