Será que é possível entender o Liberalismo como uma ideologia, sem o risco de criar uma deformação utópica do pensamento liberal? Ao contrário das doutrinas essencialmente prescritivas, a conformação do pensamento liberal e de toda a sua base moral subjacente derivam do processo de formação do que entendemos por "civilização ocidental", mediante o entrelaçamento, em torno de um fio condutor, de rupturas e continuidades em vários tempos históricos. Esse fio condutor, por sua vez, é a religião, que desempenha o papel, nas mais diversas sociedades, de força criativa e coesiva, ao orientar as consciências, limitar as pretensões e moldar as tradições. Ideologias não se limitam ao caráter prescritivo. Na construção de uma ideologia, unem-se a elucubração racional e a idealização. Ora, ninguém sentou à luz de uma vela, coçou o queixo e decidiu: "Hoje vou inventar a economia de livre mercado". Mesmo teorizações sobre temas como Estado de Direito, democracia representativa e princípio de subsidiariedade partem sempre de um referencial: a realidade. A razão humana, no pensamento liberal, esforça-se por compreender a realidade. Já o elemento de idealização presente nos construtos ideológicos conduz à priorização da transformação do que é real, ou mesmo à negação do que "é" em nome do que "deveria ser". O elemento de utopística que sustenta as mais diversas ideologias resvala a um só tempo na ingenuidade idealista e na pretensão arrogante. Quem pode atribuir-se o papel de árbitro para determinar como o mundo deveria ser e funcionar? O que é desejável nem sempre é possível e, mesmo quando possível, os meios para atingi-lo podem, em si, ser absolutamente indesejáveis. Daí a importância de um elemento de transcendência para equilibrar e limitar as pretensões racionalistas aos marcos da realidade e da moralidade. O embate ideológico é diferente do confronto honesto de idéias. No primeiro caso, o que se tem é uma ideologia questionando a realidade e caracterizando-a também como ideologia, na tentativa de refutá-la mediante o abuso da razão. Já no segundo caso, o que se tem são indivíduos discutindo e acomodando as suas perspectivas acerca de questões de fundamentação, não com o objetivo de modificar o real, mas de compreendê-lo melhor, na tentativa de identificar os caminhos mais adequados para o desenvolvimento, o bem-estar e a prosperidade dos indivíduos e dos povos. A interpretação do pensamento liberal como corpo ideológico satisfaz à necessidade de polarização inerente a todas as manifestações coletivizantes que, quando se definem como ideologias, precisam de outra ideologia que lhes seja antitética para a sua própria sustentação. Quando se têm, de um lado, uma ideologia caracterizada como representante da opressão e, do outro, uma ideologia que se afirma como paladina da libertação dessa mesma opressão, consegue-se o embate ideológico a partir do qual o apelo ao que seria desejável termina por impor-se como "moralmente superior". As posições mais extremas dentro do próprio pensamento liberal transformam o Liberalismo em ideologia a partir de sofisticados exercícios de racionalização que deixam de lado o mais importante: como o mundo realmente funciona. Dessa maneira, sacrifica-se a razão à racionalização e os indivíduos tornam-se meros instrumentos de especulação. Não se defende, assim, a liberdade possível a partir das dinâmicas históricas e sociais, mas uma liberdade supostamente desejável, atraente e sedutora, dissociada porém das identidades culturais e das interações voluntárias dos indivíduos no interior das sociedades. Nota do Editor: Claudio Téllez é matemático e analista internacional, é chileno e nasceu na Alemanha (Bochum) em 7 de novembro de 1976. Colunista do site Mídia Sem Máscara desde 2003 e do site Ratio Pro Liberte desde 2004, atualmente desempenha a função de Vice-Presidente de Formação e Projetos no Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista (CIEEP), onde também escreve artigos e resenhas de livros.
|