Parecia que seus joelhos se dobrariam como quem se curva para fazer uma prece. Mas não uniu as mãos e nem fechou os olhos. Agachava-se lentamente para ver o que a lixeira poderia oferecer a uma hora daquelas. Final de tarde na rua bem asfaltada do bairro de classe média, onde alguns caminhavam para desobstruir a mente, outros corriam ainda atrás do dinheiro perdido do dia e uns poucos fumavam e assistiam de suas sacadas às cenas que envolviam o andarilho. Seu nome poderia ser Paulo, José, Pedro, Rui, Carlos, enfim, isso não importava. Já ria sozinho e vez por outra olhava para os lados com olhar perdido. Olhava sem olhar, sem fixar os olhos em alguém ou algo. Volvia novamente os olhos rapidamente para avaliar o jantar do dia e abocanhava alguma comida qualquer. Alimentava-se do nosso pior. Mas era o seu melhor. Os dentes podres impregnados de farelos de alguma coisa que se desmanchava na boca, há muito vazia, assustavam os transeuntes, mas o sofrimento solitário do tal andarilho não atemorizava ninguém. Nem nos fazia perder um pouco de nosso sono. Continuou mastigando como quem absorve o que de mais nutritivo há em um alimento, mas disfarçava bem e pensava no que fazer depois. Os pensamentos longínquos nem mais faziam parte de sua realidade, mas os pragmáticos sim. Pensava no hoje. No agora. Aprendeu a desapegar-se de tudo, porque nada lhe pertencia. Vivenciava os instantes, porém se preocupava com o imediatamente depois. Ria sozinho, por vezes em silêncio. Somente o rosto denunciava aquela aparente felicidade. Era um sorriso insano, por causa da mente que já não suportava tanta fome, tanto descaso, tantos insultos, tantos xingamentos nas ruas. Não conhecia a caridade dos que se proclamavam caridosos, mas precisava dela. Pelo menos um naco de solidariedade. Parcas horas de ajuda, de apoio. Talvez procurasse uma igreja, uma freira, um pastor evangélico, a assistência social da prefeitura, grupo não sei do quê, amigos de não sei quem, blablablás mil, ilusões, tentativas, fachadas... Primeiro iria comer aquele resto de sanduíche. Praticamente intacto. Ainda conservava verduras frescas em seu interior. Apetitoso. Ia bem com a maionese encontrada no latão azul ao lado. A tarde caiu e já era hora de levar alguma coisa. Não era condutor de carroças e nem tinha ofício de papeleiro. Caminhava somente com sua mochila nas costas e perambulava pelo bairro há uma semana. Cantarolava alguma coisa meio sem sentido até chegar a uma porta. Bateu uma meia dúzia de palmas, olhou para as luzes que lentamente se acenderam internamente e pediu um cobertor. Ouviu de dentro uma voz ríspida e rápida dizendo que pedisse por favor primeiramente. Mais do que depressa, consertou o pedido e implorou o cobertor. Um cobertor, por favor, argumentou. As luzes se apagaram. Nada aconteceu. O andarilho foi embora sem tristeza e nem pesar. Ainda era cedo para conseguir algo. Com a ajuda do vento ligeiro no início de noite, o homem da sacada varreu rapidamente as cinzas do seu cigarro caídas na frente da porta e escondeu-se em casa. Não sem antes certificar-se da saída do andarilho. Bufou qualquer coisa em pensamento e entrou para se deitar com seu cobertor e ver qualquer programa de televisão. O andarilho ainda andou mais um pouco até adormecer junto aos jornais velhos da rua embaixo da marquise. Hoje demoraria um pouco mais para adormecer por causa do frio... Nota do Editor: Felipe Diemer de Lemos é jornalista, participou de três antologias de escritores gaúchos, mora em Florianópolis e atualmente trabalha como assessor de imprensa na capital catarinense. Prepara livro de crônicas e é colaborador ocasional de jornais e revistas.
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