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Crônicas
11/01/2007 - 22h04
O amor mítico
Lula Miranda - Agência Carta Maior
 

"Eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível do homem que iniciei
na medida do impossível
" - T.N.

"A pureza é um mito". Conheci essa perturbadora sentença há muitos anos, através da leitura do velho e bom Torquato Neto em seu livro póstumo Os últimos dias de paupéria, organizado pelo efusivo mestre de cerimônias do "desbunde", o poeta e produtor Waly Salomão (hoje também já falecido). No livro, essa frase aparece numa fotografia, estampada um pouco acima da moldura de um espelho de elevador em que a imagem "mefistofélica" do poeta Torquato estava refletida.

(Prometo um outro dia falar mais sobre esse poeta e a importância da sua obra, e da sua figura para o Tropicalismo, para a poesia e para o movimento da contracultura na década de 70. Hoje, gostaria de me ater a essa sua frase, o impacto que ela causou na minha vida e usá-la como gancho ou ponto de partida para uma outra reflexão.)

"A pureza é um mito". Quando li essas palavras elas causaram em mim o efeito de uma sentença definitiva e avassaladora. Para mim, àquela época na tenra juventude, ali estava resumido tudo, todo o conhecimento humano, toda a poesia, todo o fundamento da arte, desde a antiguidade até os nossos dias atuais - ou até o fim deles. Todo o intento humano, da alegoria de Sísifo ao operário de nossos dias. Explica-se: na juventude se está mais propenso a formulações hiperbólicas e radicais. Fiquei por um bom tempo sem escrever nada, encurralado, emudecido por aquelas "definitivas" palavras do poeta, pois entendia que depois daquela frase nada mais precisava ser dito. E, de certa forma, tudo já havia sido dito mesmo, se não por Torquato pelos filósofos, pensadores e poetas ao longo da história do homem. Somos apenas meros "diluidores" ou bonecos de ventríloquos - e devemos, humildemente, não perder de vista a consciência disso. Mas isso é uma outra questão, que aqui não é objeto de discussão.

Um dia, como que ainda saboreando, ou digerindo, essa frase "perigosíssima" e avassaladora do velho "Torqua", proferi a minha própria sentença, e só assim consegui me libertar do espanto e mutismo que aquelas palavras haviam causado em mim. Antes que aquelas palavras representassem para mim a definitiva cilada, a capitulação, o fim. Torquato abriu o gás e se foi, literalmente. As palavras guardam intrínsecos sortilégios: estranho poder e perigo.

O amor é um mito - essa foi a máxima por mim exarada e que me soou definitiva, libertadora. Esta sim me parecia ser a grande sentença que condenava o homem a sua infinita melancolia. O amor é como uma miragem que perseguimos todo o tempo nessa longa trajetória que é a vida. Está em tudo, em todos e em nenhum lugar. Está na literatura, na música, nas artes plásticas, nos filmes - enfim, permeia toda a cultura, o chamado inconsciente coletivo da humanidade.

Não falo aqui sobre o amor filial, tampouco do amor de uma bela e verdadeira amizade, ou mesmo do óbvio amor dos amantes apaixonados e dos casais. Falo daquele amor que desconhecemos, e que não conheceremos jamais. Distante, etéreo, incompreensível, inatingível: inefável. Um sentimento como aquele grande amor que teria sido vivido em algum lugar do passado (lembra o filme com Cristopher Reeve?) - isso, obviamente, para os que acreditam em algo além do presente. Aquele sentimento mágico e "único" que parece ter sido apagado de nossa mais remota lembrança pelo mistério e pela graça divinos. Mas, apagado por quê? Será essa sensação uma lembrança, um resquício do infinito amor de Deus: "amai-vos uns aos outros como eu vos amei". Obviamente não tenho a resposta e, seguramente, ninguém a tem.

Falo sobre aquela estranha emoção que sentimos quando enlevados por uma bela canção. Ou quando lemos um dos trágicos romances de Shakespeare. Ou ainda quando assistimos a um bom filme que retrate uma singular história de amor. Aquele sentimento adormecido, que tanto desejamos e tememos. Aquele que está para além da nossa razão e controle, e que buscamos todos os dias em cada rosto na multidão, em cada olhar, e em todos os lugares e instantes de nossa vida. Será essa uma busca vã, mítica?

Mas que amor será esse? Que necessidade é essa que não se esgota nunca? Por mais que amemos nossos filhos, nossos maridos, nossas mulheres? Será esse o sentimento que faz com que o austero pai de família molhe com suas lágrimas as coxas de uma "mulher da vida" qualquer? Será esse o tal amor que perseguimos quando procuramos a nossa "cara-metade", o "príncipe encantado"? Será que os chamados solteirões - vulgarmente rotulados de "titio" ou "titia" - não são aqueles que optaram por não "baratear" o seu amor? Aqueles que se mantiveram fiéis a sua eterna busca? Quem poderá responder a todas essas questões? Não há resposta possível.

Ou será que estou apenas "dourando a pílula", tentando dar contornos poéticos e "românticos" a um tema já amplamente dominado pela psicanálise? Será que esse sentimento que tento, inutilmente, descrever aqui não passa daquela difusa lembrança que trazemos da mais tenra infância, quando fomos violentamente expulsos do conforto do útero materno? Será ele apenas um resquício, ou seqüela mais evidente, do tal complexo de Édipo ou de Elektra? Sei que a psicanálise pretende guardar um estreito laço de "parentesco" com a poesia, mas, sem dúvida, prefiro a lógica essencial dessa última.

Acho que esse é um dos mistérios primeiros e essenciais da vida. Um dos que nos move. Não me interessa - e nem teria jamais essa pretensão - desvendá-lo aqui. Prefiro seguir feliz os restos dos meus dias com essa "venda" amarrada aos meus olhos. Prefiro seguir acreditando no mistério, no imponderável, naquilo que transcende nossa limitada compreensão. E acredito que você também, caro leitor. Não estou certo?

Não tenho a pretensão dos chamados "senhores da razão". "Só sei que nada sei" - como já disse o velho sábio. Apenas agradeço ao bom Deus (ou ao Senhor do Bonfim), em sua generosidade infinita, ter me permitido a inspiração e a liberdade para compartilhar com vocês essa reflexão - e algumas outras aqui servidas/sorvidas. Certas coisas são como as mágicas palavras dos homens santos e dos sacerdotes, não se deve proferi-las em vão. Pois aí elas já estariam desprovidas de toda força e encantamento. E as palavras - hoje já o sabemos - podem trazer em si todo um entusiasmo e um certo poder milagroso, que pode nos servir como poderoso bálsamo nessa fatigante jornada dos dias. As palavras são como amuletos. São como os dados que rolam suavemente na maciez da camurça e definem a nossa sorte.

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