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Crônicas
14/01/2007 - 09h20
As abelhas do rádio
Chico Guil - Agência Carta Maior
 

Morávamos eu e dois estudantes de engenharia numa mansão em ruínas no centro de Curitiba. Enquanto eles enfrentavam os ásperos cálculos integral e diferencial, minha rotina era seguir de manhã para o cursinho. Ficava quatro horas sentado nas cadeiras duras tentando entender por que era importante aprender logaritmo, ou por que era preciso aprender inglês, se eu não gostava de inglês e nem jamais pretendia falar inglês. Na volta entrava no supermercado, comprava frutas e verduras na banca de ofertas e enfiava uma barra de chocolate debaixo da camiseta para adoçar o que restava da minha vida. Acomodava-me no cruel assento do ônibus sem amortecedor e retornava à velha casa, cuja única virtude era abrigar um dos mais belos jardins que já conheci.

Não era daqueles jardins cultivados, com "cercas vivas" de arvorezinhas podadas formando desenhos de animais, não as vistosas flores ornamentais, cercando altas hastes de folhagens exóticas. Nosso jardim era uma pequena selva de inúmeras plantas nativas. Na primavera explodiu numa profusão de formas e cores sob o úmido muro que nos separava de Dona Cota, nossa vizinha ranzinza.

Pouco a víamos, mas sabíamos da índole da velha pelo péssimo relacionamento que mantinha com os pombos residentes em seu quintal. Tratava-os a vassouradas, enquanto eles esvoaçavam e continuavam estercando a casa e as couves da hospedeira, e também os terrenos circunvizinhos, propiciando a fertilidade que resultava naquela flora abundante.

A exuberância das flores não afetava os sentidos dos meus comensais. Estavam demasiado ocupados com os arranjos humanos para prestarem atenção às construções da inteligência cósmica. Flores, puá! serviam talvez para juntar besouros e taturanas, que viravam borboletas e à noite vinham rodopiar em torno da lâmpada e atrapalhar os estudos!

Ramalho era loiro e cabeludo. Tocava violão à tarde, olhando os edifícios ao longe. Raras vezes conversávamos, exceto para definir quem lavaria as louças no final de semana. Quando não estava com o violão e os livros, ocupava-se de seu gato siamês, que tínhamos de suportar com seus pêlos derramados pelas mesas e o aroma da caixa de areia com os resíduos metabólicos junto à porta da cozinha.

Dadá era diferente. Mulato escuro, cabelo enroladinho, cantarolava olhando o espelho e aparando a barba ou cozendo suas memoráveis feijoadas. Não me deixava quieto, sempre que me via afastado das apostilas. Dizia-se preocupado com minha solidão, naquele deserto que ele próprio atravessara dois anos antes, quando, como eu agora, preparava-se para o vestibular. Mas tinha era dificuldade em acomodar-se sozinho, como Ramalho lá com seu violão e suas revistas técnicas. É assim mesmo que se formam as afinidades, na conjugação das carências.

Dadá perguntava-me sempre das abelhas, que eu cultivava desde adolescente na terra de meus pais. Tinha uma certa vergonha dessa atividade, algo demasiado primitivo para quem aspirava um diploma de bacharel em direito. Revelei quase sem querer, quando meu colega perguntou de onde vinha aquele mel, que eu sempre trazia de minhas visitas à terra natal. Dadá ficou extasiado quando lhe expliquei o processo que levava do néctar cru extraído das flores àquele saboroso produto dentro do pote. Passou as semanas seguintes trazendo questões sobre a apis mellifera e me descobria narrando o temperamento dessas criaturas, que no auge da florada alimentam seis a sete ovos com geléia real para a formação de novas rainhas, e quando um dos casulos eclode a nova soberana enfia seu ferrão nos casulos ainda intactos para impedir o nascimento das concorrentes. Em seguida, acompanhada de um grupo de alguns milhares de abelhas, abandona a colméia e migra em busca de um novo ninho. Se um apicultor encontra-se na trajetória das migrantes, atira-lhes água ou bate lata para simular trovão e as abelhas logo descem e se agrupam num local próximo.

- Quando morre a rainha - expliquei - se não há ovos para alimentar, as próprias abelhas regeneram sua capacidade de ovular. Mas como botam apenas ovos não fertilizados, nascem somente zangões. E a colméia se transforma numa "zanganeira", condenada à extinção.

- Ué, por que nascem apenas zangões?

- Porque os zangões são aplóides.

- Ah, sei.

Não tive certeza de que Dadá houvesse compreendido essa natureza genética dos machos das abelhas. Ao ouvir uma palavra que lhe parecesse "científica", aprumava-se, como que temeroso de dar-se por ignorante, mas guardava na memória para depois consultar o dicionário. Ficou ainda mais interessado quando ressaltei que o zangão troca sua própria vida por um momento de amor com a rainha. Logo após a cópula, que se dá numa espécie de dança entre a soberana virgem e vários zangões, os sortudos caem fulminados. Seus espermatozóides ficam armazenados numa bolsa no abdômen da rainha, e a fertilização somente ocorre no instante mesmo de botar os ovos.

- Ovos fertilizados resultam em abelhas fêmeas, que são diplóides.

- Sei.

Foi numa tarde daquela florida primavera que meu amigo chegou em casa esbaforido, exagerando nos gritos agudos, dizendo "Guil, venha aqui, olhe lá naquela árvore, no lado do muro do sanatório, veja se aquilo não é uma colméia, não sei, mas eu tava atravessando a rua e vi aquela nuvem de insetos e eu acho que é...".

Enquanto Dadá não parava de contar, eu já havia atravessado a rua e observava de perto um enxame formidável agarrado nos delgados galhos do flamboaiã. Ainda havia abelhas voejando em torno, sinal de que eu teria tempo suficiente para procurar uma caixa.

Revirei os quartos, a despensa, nada. Nossas quinquilharias ocupavam todos os recipientes disponíveis. Talvez encontrasse uma caixa de papelão nas lojas próximas, mas onde a depositaria ao abrigo da chuva, senão dentro da casa?

Poderia deixá-lo simplesmente descansar e ir embora. Não havia um motivo para aquele alvoroço, senão a lembrança das correrias, quando aparecia um enxame na minha cidade e nos lançávamos alucinados, eu e outros apicultores, para fazê-lo "sentar". Ou, talvez, eu quisesse mostrar a Dadá todos aqueles procedimentos que me extraía com sua curiosidade, mas isso posso dizer somente agora, passados anos, porque naquele instante tudo o que eu pensava era numa caixa.

Retornei à rua e lá estavam Dadá olhando de longe o enxame, uma bola preta balançando nos galhos do flamboiaiã.

- Não tenha medo - falei. - Abelha quando enxameia não pica. Pode enfiar a mão dentro do enxame que não acontece nada.

Retornei aos fundos da casa, espiei as dependências de um pequeno rancho, onde o proprietário deixara um velho carrinho de pipocas, garrafas vazias e varas de pesca. Nada de caixas. Postei o carrinho junto ao muro, saltei sobre ele cuidadosamente e olhei o quintal de Dona Cota. Parecia um daqueles fundos de casa do interior, com ameixeiras de galhos cobertos de esterco de galinhas, pintinhos correndo atrás da choca preta, um cachorro grande e magro deitado junto ao galinheiro, pombos de todas as cores arrulhando sobre as várias águas do telhado da velha casa de alvenaria e Dona Cota sentada numa cadeira de balanço bordando ou costurando um tecido azul.

- Boa tarde! - gritei.

- Ãh!?

- A senhora por acaso usa aquela caixa?

- O que foi, moço?

- Aquela caixa, ali. A senhora por acaso vai jogar fora?

- Isso aí? Grande coisa! - Fez um gesto de desprezo com a mão que segurava a agulha. - Nunca mais vou ter que ouvir essa coisa.

- A senhora me empresta?

- Pode levar.

- Como é que eu faço?

- O quê?

- Como é que eu pego?

- Ah, isso. Eu levo. Espere aí que eu te alcanço.

Encostou o bordado, ou a costura, e apanhou num canto da varanda aquilo que eu imaginara ser uma simples caixa de madeira. Chegando ao muro, tentou me alcançar o objeto, mas a ação foi frustrada pela baixa estatura de Dona Cota. Retornou a casa, apanhou um caixote de frutas, depositou-o junto ao muro, subiu com alguma dificuldade e finalmente me alcançou o velho rádio de seu desprezível marido, cuja morte, dez anos atrás, proporcionara-lhe uma sossegada viuvez, conforme me explicava enquanto me dava conta do que era aquilo que tinha agora nas mãos. Pensei rapidamente no caixão sob os pés de Dona Cota, que talvez eu o revestisse com um plástico para convertê-la numa colméia, mas o instante ensejava uma idéia menos prática e mais artística.

- A senhora não tem por acaso também um bobe de cabelo pra me emprestar?

Dona Cota desceu da cadeira sem questionar o pedido, enquanto eu retirava a tampa traseira e olhava o interior do rádio, cheio de bobinas, transistores e capacitores, e me perguntava como as coitadinhas se arranjariam por ali.

Dadá continuava maravilhado com a auspiciosa apresentação da natureza, naquele bolo de insetos que se movimentava. Postara-se a poucos metros do flamboaiã e soltava uns gritinhos de medo sempre que uma das guardiãs lhe sobrevoava a cabeça.

Posicionei o rádio debaixo do enxame e chacoalhei o galho, fazendo cair a bola de abelhas. Por um instante instalou-se o caos na grande família, mas logo formaram-se filas de abelhas em raios apontando a posição central da rainha, que era grande e vistosa. Apanhei-a com todo cuidado e aprisionei-a no rolo de cabelo de Dona Cota, para garantir a permanência das súditas em seu redor.

Antes de instalar o rádio-colméia sobre o carrinho de pipoca, fiz um pequeno buraco na tampa, por onde os insetos pudessem sair em busca de alimento. Durante a tarde elas viveram em alvoroço, como qualquer família que se instala após exaustiva mudança. Nas semanas seguintes confeccionaram pequenos favos brancos dentro do rádio, com os fundos dos alvéolos recobertos por fina camada de mel. A família já estava bem instalada, possibilitando a soltura da rainha.

Os ovos que ela botou foram bem alimentados e em poucas semanas a colméia tornou-se forte e produtiva. Dadá ficava a poucos metros, sempre que folgava, observando as pequenas operárias que saíam magras e chegavam repletas de néctar, as patas carregadas de pólen, em variadas nuances entre o amarelo e o vermelho.

Quando a colméia cresce e se fortalece, também embrabece. Não foram raras as vezes em que vi meus amigos batendo-se porta adentro para fugir de supostos ataques. Na verdade, eram somente pressentimentos, pois a mim mesmo jamais percebi que estivessem me perseguindo em passagem pelo jardim. Mas quem não está acostumado com abelhas zunindo - ainda que elas estejam apenas atarefadas em seu árduo trabalho diário - só consegue pensar em picadas. Como explicar a eles? O medo não tem fórmulas, justifica-se com tremores da carne e descargas hormonais descontroladas. Ramalho externava seu aborrecimento e já exigia o sumiço da colméia, enquanto Dadá me fazia umas caretas indecifráveis, mas não dizia nada.

Num dos últimos dias de dezembro, quando já me preparava para o desesperado dia do vestibular, chegava em casa quando vi gente correndo pela rua e dando tapas no ar, como Dadá e Ramalho costumeiramente. Junto ao muro via-se uma nuvem de abelhas em vôos rápidos, característicos de ataque, e não demorou para sentir em minha própria testa uma ferroada, seguida de outra no braço. Enquanto isso, uma revoada de pombos alvoroçava os telhados da vizinhança. Alguns subiam, subiam, uns após outros, e quando alcançavam as alturas, despencavam mortos na rua e nos quintais.

Entrei correndo no jardim e dei com o rádio caído de lado, a tampa aberta e os favos de mel abertos, escorrendo sobre o carrinho de pipoca. Acossado à porta da casa, ganindo, estava o cão de Dona Cota. Arrastei-o para dentro e tratei logo de arrancar-lhe tantos ferrões quantos encontrei pregados no focinho e em torno dos olhos. Em seguida, não encontrando outra espécie de combustível, arranquei as páginas das minhas apostilas e tratei de fazer com elas uma fogueira bem próximo à colméia. Tão logo a fumaça se espalhou, as guerreiras, certas de que pegava fogo em sua casa, começaram a retornar, deixando em paz os transeuntes e os infelizes pombos.

Quando olhei por sobre o muro, lá estava ainda o caixote deixado por Dona Cota. Tive por certo que o cão, tão curioso quanto todo animal que se veja em terra, decidiu explorar o além-muro, ou simplesmente sentiu-se compelido pelo aroma felino desprendido pelo gato de Ramalho, saltando em dois lances e caindo sobre a frágil estrutura que eu armara como abrigo das minhas inquilinas.

O fim da minha colméia urbana foi melancólico. Após os episódios acima, a população de abelhas diminuiu, e eu, enquanto aguardava o resultado do vestibular, distraí-me delas, como daqueles jardins de que se distrai e ele aos poucos se extingue. Sobraram somente os favos dentro do rádio, e um futuro morador deve ter-se perguntado, depois que saímos eu, Dadá e Ramalho, como foram parar aqueles alvéolos de cera no meio dos transistores.

Bem como dizia Dom Juan, é melhor não interferir no caminho daqueles que caminham. Muito menos no daqueles que voam.

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