As coisas práticas da existência podem levar a uma falsa percepção do que seja o Homem em sua inteireza. Tomemos, por exemplo, a ciência da Administração e a sua filha mais moça, a Informática. Quando se estuda um fluxo de trabalho para se produzir um sistema informatizado, estruturando uma atividade, o analista gera um grande mapa cujas respostas são "sim" ou "não" ou, "se" isso "aquilo" para cada passo do processo de decisão. E de um lance toda a riqueza incomparável da existência parece ser reduzida a essa simplicidade que, para o cúmulo, traduz-se em um simulacro do real no interior das máquinas eletrônicas, nos bancos de dados, nos sistemas e aplicativos que rotinizam quase tudo nos tempos de hoje. Podemos até falar de uma automação binária da ação humana. Toda a vida prática está de alguma maneira disciplinada por algum sistema estruturador da ação humana nos tempos de hoje. Como os sistemas escravizam os processos, sejam de trabalho, sejam outros quaisquer, reduzindo tudo à sua lógica binária, eles mesmos tornam-se uma metáfora falsificadora da Vida, um simulacro do real. Nem a Vida e muito menos o Homem podem ser reduzidos a essa simplificação para além de um mero gesto instrumental, mecânico, utilitarista inerente a uma ferramenta administrativa. No processo administrativo pode-se fazer a redução porque a humanidade é plástica e afinal qualquer processo de trabalho é uma forma de escravização do homem a alguma rotina, ainda que se saiba que a criatividade humana tem no trabalho o seu veículo e a sua ferramenta de realização. Já temos aqui um exemplo candente da ambigüidade das coisas, que não suportam a simplificação da redução binária. O mesmo se dá na ciência econômica. Economia é a ciência da escolha, isso não se discute. O que eu discuto são os fundamentos teóricos do tipo de homem imaginado para suportar a teoria econômica, derivado da visão avassaladoramente simplificadora dos filósofos utilitaristas do século XIX. O ser humano não pode ser reduzido a uma criatura que busca, simultaneamente, o prazer e a fuga da dor. O Homem é mais que isso. É muito mais. Os grandes filósofos de todos os tempos debruçaram-se sobre ele para catalogar as virtudes e os vícios, ambos componentes da psicologia humana e também metas e causas (outra ambigüidade) da sua ação. O Homem não é binário. É um complexo, para usar a maravilhosa e ambígua palavra tão cara a Carl Jung. Reside no seu âmago o Inefável e o Nefando, o herói e o vilão e, em especial, a imprevisibilidade que surpreende e faz falhar qualquer mecanismo ou sistema que, em face da pobreza da destreza e da arte humanas, tende a supor um caráter binário originário que não existe. Imprevisibilidade é um outro nome para liberdade. Gosto de citar filmes de minha galeria de preferidos para ilustrar o que quero dizer. Como costumo afirmar, cinema, quando arte, não é mera diversão, mas um espelho da alma humana como em qualquer expressão artística. "De te fala a fábula". Aqui recordo o monumental 2001 - Uma Odisséia no Espaço, do genial Kubrick. Lembro que o filme foi rodado no final dos anos sessenta, quando a ciência da computação e a capacidade dos processadores eram ainda incipientes e não se tinha o magnífico benefício que essas maravilhosas máquinas e seus sistemas trouxeram para a vida prática. É a história do Hal, o computador perfeito, a quem a nave, enviada a Júpiter, estava confiada, não apenas a sua navegação, a comunicação e toda a parte mecânica da empreitada, mas também a supervisão sobre a tripulação. Supostamente Hall tudo via e tudo sabia. Ganhou até uma bela partida de xadrez do único tripulante acordado. Mas Hal falhou precisamente porque quis ser um humano. A criatura quis imitar o criador e começou pelo ato original, matar, gesto para o qual estava expressamente programado para não fazer. Quis ter uma coisa alheia às máquinas, sentimento. Quis, em suma, deixar de ser binário. Aí deixou de ser páreo para cérebro humano, capaz de improvisar, de fazer o que não se pode prever, de "criar", de enxergar o devir, as possibilidades que não podem ser calculadas pelos melhores métodos probabilísticos. O computador foi desligado. É nessa capacidade de criar o futuro de forma inesperada que o Homem se faz Homem, no exercício de sua liberdade. Não é um mero jogo binário, de "sim" e "não". Há toda uma razão metafísica que está representada em qualquer exemplar humano, na dignidade de um magistrado e no aviltamento de um apenado às masmorras; na prodigalidade de um magnata e miséria de um deserdado da sorte; na aparente grandeza de um governante e na insignificância do mais simples dos governados. Cada homem carrega em si a semente de Deus e é capaz dos maiores gestos. Na contemplação estará também a realizar um ato humano da maior gravidade e não consigo imaginar nenhum sistema informatizado que nem por sombra possa imitar o ato de contemplar. Inteligência artificial é uma mera metáfora. Não é nada. Não é nem inteligência. É instrumento binário da mão humana, engenho falho pela própria natureza. Nota do Editor: José Nivaldo Cordeiro é executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente em São Paulo. Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias coletivistas. É um dos mais relevantes articulistas nacionais do momento, escrevendo artigos diários para diversos jornais e sites nacionais. É Diretor da ANL - Associação Nacional de Livrarias.
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