No casamento à deriva de um grande amigo, ele reclamava que a esposa raro fazia concessões, mas aprendeu, a tempo, que as mulheres não podem revelar tudo, porque sua essência é o mistério – fonte inesgotável da identidade feminina, cujo acesso, a elas restrito, está vetado aos homens. As reclamações começaram logo nas primeiras semanas de vida em comum. O marido acordava em plena madrugada com cochichos pela casa e se, de início, suspeitava de ladrões, logo acusou a esposa de esconder amantes, se bem ela negasse tudo e, a rigor, ignorasse a origem dos ruídos. Tanta desconfiança minou o casamento. O homem andava pela casa, fumava, falava sozinho, sem atinar a origem dos cochichos. Uma noite, no entanto, sentou-se defronte ao aquário que ela tanto quisera comprar e percebeu: os peixes moviam os lábios numa espécie de mímica! Era isso, então! Arrependido das suspeitas, correu até a esposa para fazerem as pazes. Ao puxar o lençol que encobria seu rosto, viu que também ela, em sono profundo, movia os lábios à maneira dos peixes, como a dialogar com assemelhados que se nutrem no mistério das águas. Por isso, a mulher não estava sempre a seu dispor: tinha de manter sintonia com o elemento primevo e arcaico da sua essência. Ou não seria mulher. Cabia a ele compreender. Deitou-se, então, por trás dela como um rochedo a suportar o embate da pélvis poderosa. E adormeceu em paz. Nota do Editor: Daniel Santos é jornalista carioca, 54 anos. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
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