Desprendo-me das folhas douradas e dos cachos amadurecidos para sentir a profundidade de minhas raízes. Viagem ao solo onírico com os ecos do farfalhar das lembranças fermentadas no último outono. Colheita, vida, poda, vida, cepa... Provo o vinho, sangue tinto corre ainda nas fantasias embriagadas e adorna o céu da boca na espera do gosto decantado dos verdadeiros encontros. Percebo, entre a cerração do dia frio, a nítida geografia da Serra da Estrela no horizonte entardecido enquanto sou agraciada com a prova do queijo de ovelha. Sinto a coagulação e a fermentação dos alimentos divinos ofertados nos altares cotidianos. Impressões cristalizadas na carne tal qual os granitos provenientes das erupções ígneas. Sinestesia de sonhos. Os gostos e aromas se confundem no corpo marcado de memórias. Sob a mesa amanhecida, o cálice ainda guarda vestígios tintos ao lado do prato com as derradeiras aderências do queijo de ovelha. Sabores únicos que influenciam as intenções e marcam as vésperas com emoções atemporais. Hibernam as realidades nas fantasias subconscientes que entrelaçam as origens com as quase presenças. O sabor, o cheiro, o toque... Despida, desfolhada, reencontrada em raízes... No inverno, confundo-me com um discreto traço escuro, cepa, vida podada nas estações frias, e faço-me tarde, no sangue, na despedida... Desperto com o calor das primeiras cores, com o extravaso de todas as emoções entranhadas, com o choro da videira... Já fortalecida com os primeiros brotos, vivo a diversidade da primavera com a imaginação dourada dos outonos que estão por vir com a farta colheita de sabores.
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