11/09/2025  22h16
· Guia 2025     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Crônicas
05/02/2007 - 05h23
A marca de uma lágrima
Ariane Bomgosto
 

À beira do leito de morte, o pai olha para a filha, tão pálida e frágil, que é nítido o seu desejo de morrer. Retribuindo ao olhar do homem, de cabelos grisalhos e voz trêmula, a menina deixa cair uma lágrima e aperta com força a mão daquele que a gerou. Sussurrando, tomado pela emoção, o pai pede perdão à filha, que fecha os olhos lentamente, até mais nada ver, ouvir ou sentir. Amélia está morta, 19 anos, cabelos pretos e lisos, nem magra nem gorda, nem alta nem baixa. Uma menina ainda, com jeito de mulher. Ali, naquela cama, parece que dorme um sono profundo. Mas não vai acordar amanhã, como todos os dias. O pai olha para a filha. Depois, olha ao redor. Tudo naquele quarto lembra a doçura da jovem. As fotos, os bilhetes colados no quadro de avisos, os vestidos pendurados no armário aberto, os pedaços de papel em cima da escrivaninha, o diário fechado na mesa de cabeceira, os livros empilhados na estante. O pai beija a mão, depois a testa da filha. Levanta e sai. Sem olhar para trás.

Ivan, ainda emocionado, chega à sala. Senta no sofá onde Amélia costumava brincar quando criança. Deixa cair a cabeça pesada. Começa a chorar compulsivamente e, neste momento, se sente o culpado pela morte da menina. Ivan não sabe exatamente quando começou a se distanciar de sua filha. Faz um esforço para lembrar da última conversa, do último beijo, do último Eu te amo. Não lembra. O pai chora ainda mais. Cético, o pai não se conforma com a morte sem causa aparente. Amélia não morrera de doença nem num acidente. Morrera de que então? O pai não compreendia. Não aceitava. Não entendia. Queria uma explicação, ali, naquele momento. Algo que confortasse seu coração ou ao menos diminuísse o sentimento de culpa que o atormentava.

Volta ao quarto onde a jovem Amélia dorme o sono da eternidade, procurando alguma coisa, que não sabe bem o que é. Olha em volta. Vê o diário. Pensa em abri-lo, lê-lo. Amélia nunca permitiria tal violação da sua privacidade. Discreta como era, prezava o respeito. Nunca fora de demonstrar sentimentos calorosos. Era fechada, até meio tímida em certas ocasiões. Gostava de ter o seu espaço. Da sua vida, poucos sabiam alguma coisa, inclusive o pai, com quem havia deixado de conversar há tempo. Amélia fez de tudo para que o pai a visse, a percebesse de alguma forma. Tudo em vão. O pai não percebeu que ela precisava dele. Agora, morta, ela parecia ter se libertado. A vida para Amélia era uma prisão.

O pai hesita, pensa em largar o diário, deixar que a filha leve os seus escritos junto com ela para o túmulo. Mas não consegue, quer ler alguma coisa que o tranqüilize, que dê paz à sua alma. Rompe o cadeado com uma faca, abre na última página, os olhos mareados, as mãos trêmulas. De dentro, cai uma pequena carta. Ivan abaixa para pegar e a cabeça da filha morta, virada para ele, parece fitá-lo e reprovar aquele ato. Vai em frente mesmo assim. Abre um papel amarelado. As palavras são mesmo da filha, reconhece a letra. A data é a do dia de hoje. O pai esfrega os olhos não acreditando no que vê. Olha de novo. A data assinada é a do dia de sua morte. Passa à linha seguinte:

"Para o meu querido pai que nada fez para me entender em vida e agora tudo faz para me compreender em morte".

Ivan deixa escorrer uma lágrima. Coloca a carta dentro do diário. Fecha-o e sai.


Nota do Editor: Ariane Bomgosto é jornalista.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CRÔNICAS"Índice das publicações sobre "CRÔNICAS"
31/12/2022 - 07h23 Enfim, `Arteado´!
30/12/2022 - 05h37 É pracabá
29/12/2022 - 06h33 Onde nascem os meus monstros
28/12/2022 - 06h39 Um Natal adulto
27/12/2022 - 07h36 Holy Night
26/12/2022 - 07h44 A vitória da Argentina
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2025, UbaWeb. Direitos Reservados.