Aos 13 anos, fui arrancado da minha casa para uma viagem inesquecível, que cruzou três estados por estradas de barro e aportou no meio do mato. O caminho foi feito a partir da fronteira, passando por Santa Rosa, Xaxim e Xanxerê, Cascavel e Londrina, que ainda exibiam um aspecto de faroeste de terra vermelha. O destino foi Goio-Erê, município que fica além de Campo Mourão, cidade maior e mais conhecida. O trajeto foi idéia de um cunhado que manobrava uma kombi de estimação, o pior carro possível para tão longa cruzada. A kombi derrapava em curvas alagadas e costumava ficar presa nos contratempos das trilhas. Foi nessa ocasião que tive oportunidade de conhecer as correntes dos pneus, que servem para dar pegada em território escorregadio. O detalhe é que eu não tinha conhecimento do objeto e quando fui convocado, no meio do temporal, a corrigir o problema das derrapagens, fiquei boiando no fundo do assento. Correntes? Onde? É que as ditas eram maiores do que o calibre do aro e costumavam escapar, deixando à mercê das intempéries nossa ambição de fazer mais do que cem quilômetros por dia, o que era muito raro. A paciência do capitão da jornada se esgotava cada vez que vislumbrava minha falta de atenção a coisas básicas como amarrar um pneu com argolas de ferro para que o barro cedesse ao acelerador. Mas finalmente o sol levantou-se quando cruzamos a fronteira com Santa Catarina, na única vez em que passei pelo oeste do Estado, que me apareceu encantador, principalmente depois de toda aquela chuva. Mas o clima se vingou ao chegarmos no Paraná. Lá tivemos que pousar em oficinas para descobrir porque raios a carruagem se recusava a seguir adiante, especialmente naquela ocasião em que estávamos perto de chegar ao fim da provação. Esses acontecimentos se deram no início dos anos 60 e sempre que conto essa história tenho de jurar que vi um animal silvestre de grande porte saltar bem no meio da picada que nos levava a Goio-Erê. Foi por um segundo e ele sumiu do mato. Dez anos depois fui até o mesmo local e só encontrei descampado. As árvores tinham sumido, assim como aquelas sensações do menino em pleno rito de passagem. A temporada na casa do cunhado e de minha irmã coincidiu com a leitura compulsiva de Sherlock Holmes, pois nada havia a fazer na pequena cidade do interior paranaense. Li metade da coleção e só parei depois de dois eventos. Um deles foi o instante em que o bravo Sherlock descobrira a origem do interlocutor apenas observando a natureza do barro que grudava no sapato do visitante. Achei que era perspicácia demais, mesmo para o maior detetive do mundo. O outro evento foi O Cão dos Baskervilles, que me assustou, já que estávamos no ermo e tudo aquilo que cheirava a solidão e suspense no livro estava sintonizado com a paisagem que me rodeava. A volta não foi menos heróica. Peguei um pinga-pinga até Curitiba, por estrada também de barro. Sozinho, fui entregue à boa vontade dos motoristas, que me ciceronearam o dia todo até eu pegar outro ônibus, em direção a Porto Alegre. Da capital gaúcha parti num Maria Fumaça até minha cidade, Uruguaiana. Voltei transfigurado. Tinha virado personagem de romance e quem sofreu com isso foram meus amigos, que precisaram aturar os detalhes da aventura por um longo tempo. Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas.
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