Em recentes artigos, alguns podem ter ficado com a errada impressão de que condeno de forma generalizada qualquer religioso já por ser religioso. Não é verdade. Sim, eu considero o fanatismo religioso extremamente perigoso e uma das maiores ameaças à liberdade. Sim, eu considero prepotente a alegação de que existe a verdade sobre as grandes questões e esta foi revelada por um messias qualquer. Sim, eu penso que a paixão que o tema desperta muitas vezes funciona como uma catraca no cérebro, impedindo um raciocínio claro e objetivo e levando ao repúdio de qualquer questionamento ou crítica. Sim, eu vejo que existem muitos embusteiros no meio religioso em busca de poder e riqueza à custa da ignorância alheia. O próprio fato da Igreja Católica ser tão rica materialmente falando incomoda. Mas não considero tudo que sai das religiões algo ruim, nem de perto. Em resumo, condeno o fanatismo religioso, a hipocrisia muitas vezes presente no meio religioso e a crença de que a fé pode ser objetiva, e não subjetiva. Mas reconheço o lado bom das religiões, assim como o fato de grandes homens terem sido religiosos. Aliás, tenho um parente próximo que é padre, e uma excelente pessoa. Convivemos bem com as divergências sobre o assunto, pois ele não é um fanático. E para fazer justiça e não deixar também a imagem de que condeno qualquer pessoa religiosa - o que está longe da verdade - pretendo tratar neste artigo da enorme e muitas vezes desconhecida influência que a Escola de Salamanca exerceu na Escola Austríaca, a que mais admiro no mundo econômico. Os precursores intelectuais da moderna Escola Austríaca foram, na maioria, dominicanos e jesuítas, professores de moral e teologia em universidades que constituíram os focos mais importantes do pensamento durante o Século de Ouro espanhol. Uma detalhada análise encontra-se no livro Escola Austríaca de Jesús Huerta de Soto. Já em 1555, o bispo Diego de Covarrubias expôs melhor que ninguém a teoria subjetiva do valor, afirmando que "o valor de uma coisa não depende da sua natureza objetiva mas antes da estimação subjetiva dos homens, mesmo que tal estimação seja insensata". O estudo de Covarrubias, cujo título era Veterum collatio numismatum, é citado por Carl Menger nos seus Princípios de Economia Política. Menger é considerado o fundador da Escola Austríaca. Este foco subjetivista iniciado por Covarrubias tem continuidade por outro escolástico, Luis Saraiva de La Calle, que definiu a relação entre custos e preços já naquela época, mostrando que os custos é que tendem a seguir os preços e não o contrário. Isso seria a antecipação da refutação que Menger faria da teoria objetiva do valor, que passaria a ser o ícone da teoria de exploração marxista. Outra notável contribuição dos escolásticos foi a introdução do conceito dinâmico de concorrência, entendida como "o processo empresarial de rivalidade que move o mercado e impulsiona o desenvolvimento da sociedade", segundo Huerta de Soto. Este viria a ser o coração da teoria do mercado da Escola Austríaca, contrastando com o modelo de equilíbrio de concorrência perfeita ou monopolística dos neoclássicos. Os preços de equilíbrio, portanto, não poderiam ser conhecidos, e isso derrubava a teoria de planejamento rígido defendida pelos socialistas. As contribuições dos cardeais jesuítas espanhóis Juan de Lugo e Juan de Salas também merecem destaque. O primeiro, já em 1643 havia concluído que o preço de equilíbrio depende de uma quantidade tão grande de circunstâncias que apenas Deus pode conhecer. O segundo afirma que apenas Deus pode ponderar e compreender exatamente toda a informação e conhecimento usados no processo de mercado pelos agentes econômicos. As mais refinadas contribuições de Mises e Hayek sobre a teoria do conhecimento estavam então sendo antecipadas no século XVII. O princípio da preferência temporal, um dos elementos essenciais da Escola Austríaca, fora mencionada por Martín de Azpilcurta em 1556. Ele diz que, tudo o mais constante, os bens presentes são sempre mais valorizados do que os bens futuros. Azpilcurta tomou emprestado este conceito de um dos discípulos de Tomás de Aquino, Giles de Lessines, que já em 1285 havia afirmado que "os bens futuros não são tão valorizados como os mesmos bens disponíveis de imediato". Complicado é entender isso e condenar a usura, como tantos religiosos fizeram. O trabalho do padre Juan de Mariana, intitulado De monetae mutatione, publicado em 1605, critica a política seguida pelos governantes da sua época de baixar de forma deliberada o valor da moeda, embora não utilize o termo "inflação", desconhecido então. Mariana critica também a política de estabelecimento de um preço máximo para lutar contra os efeitos da inflação. Ele refere-se ao governo como um cego tentando guiar aquele que vê. E ainda sobre a contribuição à questão monetária, Luis de Molina foi o primeiro teórico a salientar que os depósitos e o dinheiro bancário em geral, que ele denomina em latim chirographis pecuniarum, é parte integrante, da mesma forma que o dinheiro em espécie, da oferta monetária. Huerta de Soto conclui que "os escolásticos espanhóis do Século de Ouro foram já capazes de articular o que depois viriam a ser os princípios mais importantes da Escola Austríaca de Economia". Como fica claro, ainda mais para um profundo entusiasta do brilhantismo da Escola Austríaca, os religiosos ofereceram ao mundo muitas coisas boas também. Isso nunca deve ser negado apenas para atacar os frutos podres - que existiram, e aos montes. Este tipo de atitude é desonesta, típica de bandos coletivistas que consideram tudo fora de sua seita terrível. Como fazem alguns religiosos fanáticos, que jogam no mesmo saco os ateístas e os comunistas, como se os horrores destes fossem conseqüência inexorável da descrença na divindade, ou como se todo ateu fosse comunista, ignorando a enorme quantidade de excelentes liberais ateus ou agnósticos. Os desonestos ignoram convenientemente que uma das maiores influências do comunismo foi um fervoroso cristão católico, Thomas More, cuja obra Utopia estimulou vários comunistas. Afinal, para os crentes fanáticos, o primeiro e muitas vezes único critério de julgamento de valor é a crença religiosa, ainda que muitos crentes sejam pérfidos e muitos ateus sejam honestos. Para aqueles que não são fanáticos, no entanto, não há mal algum em reconhecer que existiram muitos ateus terríveis, como os comunistas (ainda que possamos considerar o comunismo uma seita religiosa, com puro misticismo como pilar de sustentação), e muitos religiosos terríveis também. Por outro lado, vários ateus são ótimas pessoas, assim como vários religiosos. E é neste grupo que devemos incluir os membros da Escola de Salamanca, com espetacular contribuição para o pensamento moderno. Nota do Editor: Rodrigo Constantino é economista formado pela PUC-RJ, com MBA de Finanças no IBMEC, trabalha no mercado financeiro desde 1997, como analista de empresas e depois administrador de portfólio. Autor de dois livros: Prisioneiros da Liberdade, e Estrela Cadente: As Contradições e Trapalhadas do PT, pela editora Soler. Está lançando o terceiro livro sobre as idéias de Ayn Rand, pela Documenta Histórica Editora. Membro fundador do Instituto Millenium. Articulista nos sites Diego Casagrande e Ratio pro Libertas, assim como para os Institutos Millenium e Liberal. Escreve para a Revista Voto-RS também. Possui um blog para a divulgação de seus artigos.
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