Encontraram-se pela primeira vez em cima do muro que dividia as duas casas. A menina Adélia brincava sozinha no jardim, quando avistou uma dália rubra. Empilhou pedras, subiu e deu de cara com o garoto Adauto que alcançara a flor primeiro e a oferecia sorridente à vizinha. Ficaram amigos e, desde esse dia até o final da infância, os dois brincavam juntos. Bastava pular o muro. Ele se equilibrava no alto das árvores para mostrar o talento do trapezista que pretendia ser e ela rodopiava pelo jardim como uma bailarina que ele nunca mais esqueceu. Um dia, tudo mudou, talvez porque Adauto criou buço e engrossou a voz, quem sabe porque urgências inéditas passaram a comandar todo o organismo de Adélia. Fato é que mudaram, mudaram muito mesmo. E, assim, aturdidos com a nova identidade que se impunha, separaram-se. Mas, não, para sempre. Certa noite, a mocinha amargava insônia e suores na cama. A iluminação pública estampava no teto do quarto a sombra do pé de dália e, lá no alto, apareceu Adauto já rapazinho. Com a elasticidade e o encanto de um trapezista, desceu suave sobre a cama. Não fora um sonho - Adélia certificou-se logo ao despertar pela manhã: a nódoa vermelha no lençol avisava que por ali passara o amor. Nódoa vermelha, sim, como a dália que um dia o tal menino lhe ofertara. Só que agora não a enfiou atrás da orelha, mas guardou-a no coração. Nota do Editor: Daniel Santos é jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
|