"O hábito de culpar o presente e admirar o passado está profundamente arraigado na natureza humana." (David Hume) Um dos campos onde a saudade por um passado idealizado mais mexe com as pessoas é o da moralidade. Há um sentimento bastante comum de que nunca antes a humanidade esteve tão desapegada de valores morais como no presente. Ocorre que isso vale para o passado também. Muitos antigamente tinham o mesmo tipo de impressão, e assim sucessivamente. Mas será que os valores morais da humanidade estão mesmo em declínio desde os primórdios? Será que cada vez mais os indivíduos se tornam seres imorais? Ou será que esta imagem é apenas fruto de uma característica comum da natureza humana, de enaltecer o passado e condenar o presente, sendo normalmente mais catastrófico ainda com as previsões do futuro? Em seu livro Moral Freedom, Alan Wolfe diz que "toda geração acha a moralidade das gerações anteriores melhor que a sua própria". Ele usa como exemplo a imagem da Era Vitoriana, tida hoje por alguns como o ícone da moralidade. Mas o que dizer da sátira de Anthony Trollope, The Way We Live Now, escrita em 1875 justamente para expor uma Inglaterra repleta de jogadores bêbados, financistas corruptos e amantes incompetentes? Será que podemos mesmo encarar a Era Vitoriana como a retidão moral vis-à-vis a atualidade? Em quais aspectos o mundo era moralmente superior naqueles tempos? Podemos comparar as duas épocas em uma área onde muitos conservadores costumam usar para atacar o suposto declínio moral dos nossos dias: o divórcio. Muitos afirmam que as crescentes taxas de divórcio são forte evidência - senão prova - do total desapego aos sólidos valores morais. Mas que valores seriam esses? A lealdade acima de tudo, inclusive da felicidade? A submissão da mulher que permanece casada porque seria vítima dos mais pérfidos comentários? O apego ao conceito cristão de matrimônio, transformando dois indivíduos em um até que a morte os separe, mesmo que a vida seja infeliz? A obediência da mulher aos pais, do tempo em que sequer tinha a liberdade para escolher seu próprio marido? Pois por esta ótica, não vejo declínio algum, mas sim uma evolução moral, que garante maior liberdade de escolha para os envolvidos no casamento, que deve ser visto como algo bom e sempre voluntário, e não um sacrifício. O Ato de 1857 na Inglaterra sobre o divórcio foi um pequeno passo rumo à liberdade, mas muito tímido ainda. Um marido poderia pedir o divórcio por adultério, mas uma mulher teria que provar não só o adultério, como maus tratos e uso de crueldade. Será que isto é moralmente superior ao que temos hoje, mesmo que sejamos obrigados a conviver com maiores taxas de divórcio? As pessoas não têm o direito de buscar a felicidade à sua própria maneira? Com o advento da independência financeira feminina, muitos casamentos acabam simplesmente porque as mulheres não são mais obrigadas a aturar certas coisas que consideram inaceitáveis. Isso não é algo bom, que deveria ser celebrado? Desde quando ficar casado a qualquer custo é algo decente e moralmente correto? Devemos enaltecer os tempos onde maridos autoritários abusavam da escravidão velada da mulher, atendendo as demandas sexuais com cortesãs enquanto as esposas ficavam submissas em casa? Que fique claro que deposito bastante importância na família e no papel que esta instituição desempenha na sociedade. É bom para os filhos que tenham os pais juntos no mesmo lar, se possível. Mas nem de perto é essencial para a criação de adultos felizes. Muito melhor ter pais separados que se entendem bem do que marido e mulher brigando dentro de casa, sob os olhares assustados dos filhos. Mesmo sem briga, os filhos sentem se houver desprezo ou indiferença entre os pais, e a dura verdade será melhor do que a mentira hipócrita. Um pai pode ser ótimo para seu filho, mesmo separado da mãe, e vice-versa. Jamais aceitaria ficar com uma mulher somente por causa de um filho. Minha felicidade vem em primeiro lugar, e creio que para a felicidade do próprio filho é fundamental que os pais sejam indivíduos felizes. No fundo, acredito que a ampliação do leque de escolhas dos indivíduos é que incomoda muitos saudosistas. O puritanismo hipócrita, por exemplo, costuma ser fruto da inveja que esses puritanos sentem daqueles que conseguem ser felizes atendendo os anseios do corpo, sem cair num vazio espiritual por conta disso. Que mal há em alguém querer ser feliz ao máximo nessa vida, a única que existe com certeza, sem desejar encará-la como um sacrifício para algo mais? Os conservadores freqüentemente alegam que esta postura leva ao niilismo, ao hedonismo que deixa um vácuo interior. Mas os indivíduos não precisam aderir ao carpe diem e viver cada dia como se fosse o último da vida, para focarem na maximização da própria felicidade nesta vida. Afinal, somos seres racionais, e podemos tentar calcular o valor do amanhã, pesando sempre o presente e o futuro em nossas escolhas. O hedonismo seria a doutrina que prega que o bem é qualquer coisa que lhe dá prazer e que, portanto, o prazer é um padrão para a moralidade. Dizer que o prazer momentâneo deve ser o padrão da moralidade significa dizer que quaisquer valores que você escolhe, consciente ou inconscientemente, racional ou irracionalmente, são corretos e morais. A vida será então guiada por sentimentos ao acaso, não pela mente. Alguém que segue de forma tão arbitrária e randômica a felicidade dificilmente irá alcançá-la. Podemos, entretanto, constatar que o bem pode ser definido por um padrão racional de valor, que o prazer não é uma primeira causa, mas apenas uma conseqüência, que somente o prazer que procede de um julgamento racional de valor pode ser considerado moral. Desta forma, estaríamos ainda buscando a maximização do prazer e da felicidade, mas de forma racional. Isto me parece algo bem mais correto do ponto de vista moral que seguir uma doutrina de sacrifício individual em nome de um bem maior qualquer. O mundo parece estar caminhando cada vez mais para este tipo de princípio moral, onde cada indivíduo pode focar em sua própria felicidade. Como todo aumento da liberdade de escolha, isso deverá gerar conseqüências indesejadas também, da mesma forma que a democracia imperfeita pode levar ao arrependimento em certas ocasiões. Mas nem por isso vamos desejar a volta aos tempos das monarquias, ditaduras ou teocracias. Pelo mesmo motivo, não vejo razão para o saudosismo de tempos onde o moralmente correto era a ausência da liberdade de escolha individual. Nota do Editor: Rodrigo Constantino é economista formado pela PUC-RJ, com MBA de Finanças no IBMEC, trabalha no mercado financeiro desde 1997, como analista de empresas e depois administrador de portfólio. Autor de dois livros: Prisioneiros da Liberdade, e Estrela Cadente: As Contradições e Trapalhadas do PT, pela editora Soler. Está lançando o terceiro livro sobre as idéias de Ayn Rand, pela Documenta Histórica Editora. Membro fundador do Instituto Millenium. Articulista nos sites Diego Casagrande e Ratio pro Libertas, assim como para os Institutos Millenium e Liberal. Escreve para a Revista Voto-RS também. Possui um blog para a divulgação de seus artigos.
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