É costume abrir reportagens ou artigos apostando na ignorância de quem lê ou na sua incapacidade de imaginar qualquer coisa. Isso também se estende aos personagens da matéria. O jornalista que comete essa gafe "não imagina" que informação não possa servir de demonstração de força, nem que a articulação do pensamento não deva ser vista como uma exclusividade de quem escreve ou diz, ou que o leitor não mereça ser tratado como um indigente mental. Uma das construções escolhidas é "Fulano jamais poderia imaginar que..." É uma conclusão vazia colocada no início de um texto jornalístico. Normalmente, o repórter não pergunta se o Fulano imaginou ou não. Não se trata de um fato, mas de solução de linguagem, de pseudo-criação. Outra coisa recorrente é o "leitor desavisado". Como você pode garantir que o leitor não está prevenido? Acho que não existem leitores desavisados, eles estão bem conscientes que estão lendo a matéria, super atentos aos seus erros e normalmente informados sobre o assunto. Pois informação não é mão única, é algo compartilhado. Não existe, portanto, motivos para arvorar-se numa ascendência sem base. Mais uma: o repórter propõe uma pergunta que em tese demandaria uma resposta óbvia. Então ele tasca: "Certo?" E depois surge com sua magnífica intervenção: "Errado!". Por que não fala logo do que se trata, em vez de tentar criar suspense e demarcar bem o território do gênio que escreve e o bobalhão que lê? Na televisão, esses lugares-comuns são um assombro de redundância. Sem falar no dedinho apontado para o telespectador e o sarrinho implícito quando se referem ao "sofá". Como se o telespectador quisesse apenas folgar, estivesse ali no sofá à mercê dos jornalistas que levam sua comidinha informativa na boca. Depois da invenção do zap, as pessoas que aparecem na TV deveriam ter mais compostura. Fala-se muito que o jornalista precisa escutar, que todo mundo precisa ouvir, mas não dizem como. Escutar é uma atividade em desuso. As pessoas falam ao mesmo tempo e estão sempre pensando no que vão dizer, por isso se fecham. O que há são falsas expressões de atenção, enquanto o pensamento voa longe. Numa sociedade de escravos como a nossa (em que todo mundo é senhor) escutar é encarado como um ato passivo de servidão. O escravo escutava o feitor de cabeça baixa e nem abria a boca. Para insurgir-se contra essa herança até hoje vigente - a da servidão absoluta - as pessoas se revoltam abrindo o bico a toda hora. Isso as enreda num círculo de ferro. O monólogo coletivo é o sinal mais evidente de uma nação em frangalhos. Quando não há saída, quando a fala alheia enfim se impõe na conversa, a tendência é repetir obsessivamente as frases escutadas à força. O objetivo é esvaziá-las de qualquer poder. É um recurso contundente: a repetição exaustiva sugere que estão sendo checadas as verdadeiras intenções do interlocutor, para verificar (ou "conferir", o verbo recorrente que transforma todo mundo em fiscal) se o que está sendo dito agora confirma o que foi defendido antes. Escutar é um exercício ético e exige que os espíritos se desarmem (que é maneira madura de exercer a inocência). É preciso, por isso, deixar de tentar completar as frases do Outro, como se fôssemos um serviço digital automático, como se a pessoa que fala não fosse capaz de oferecer mais nenhuma surpresa. Muita gente só escuta se conseguir apropriar-se da fala. Funciona assim: um diz e o outro boceja. De repente, algo parece ser muito interessante. Finge-se que não se está prestando atenção, mas daí a pouco "aplica-se" exatamente o que foi dito. Como se o outro jamais tivesse dito nada. Se você reclamar, aí mesmo que não será escutado. E se você espernear, fica com fama de reclamão. Isso acontece todo o dia. Tem muita gente assassinada pelos que não demonstram nenhum arrependimento. Há ambiente para isso. Não escutar e apropriar-se da fala alheia são crimes idênticos. Para os algozes, funcionam como aqueles venenos que, completado o serviço, não deixam vestígios aparentes. Para as vítimas, exclusão ou silêncio têm o poder de fogo de uma bala. Ainda mais se o interlocutor resolver colocar conclusões imaginárias na cabeça que não lhe pertence. Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas.
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