Dois recentes discursos nos dão muito bem uma amostra de quão disparatada ainda é a discussão comercial entre nações nos dias de hoje. Vamos a eles: "...os Estados Unidos têm subsídio muito forte para a sua agricultura e a União Européia tem uma proteção muito forte à sua agricultura. Então, o que nós estamos pedindo é que os Estados Unidos deixem de dar o subsídio que dão hoje; que a União Européia flexibilize a entrada de produtos de países do terceiro mundo; e que os países do G-20, do qual Brasil, Índia e China fazem parte, flexibilizem produtos industriais em setor de serviço. Nós estamos dispostos a fazer a nossa parte, desde que eles façam a parte deles". (Lula) Já o ministro francês da Agricultura, Dominique Bussereau, acusou Brasil, Argentina, Austrália e Nova Zelândia, chamadas por ele de "grandes potências agroindustriais", de agir como "predadores" nas negociações da OMC (Organização Mundial do Comércio). "São países que gostariam de entrar em nossos mercados, que nós baixássemos as nossas tarifas aduaneiras sem dar a menor contrapartida para que pudéssemos entrar em seus mercados". Esse tom beligerante, especialmente do francês, que parece enxergar o comércio mais como uma guerra do que como algo vantajoso para todos, é sintomático do espírito mercantilista que impera em muitos países, levando as pessoas (no Brasil certamente a maioria) a acreditar que os nossos interesses comerciais são incompatíveis com os interesses dos demais países. Malgrado a teoria econômica já tenha demonstrado que o comércio livre e voluntário, a divisão do trabalho e a acumulação de capital são os motores do desenvolvimento, algumas nações acostumaram-se a olhar com indisfarçável inveja a prosperidade alheia e consideram que os ganhos de uns provocam, necessariamente, prejuízos a outros, como num jogo de poquer. Como bem vaticinou Adam Smith, há mais de dois séculos, "o comércio, que deveria naturalmente ser um laço de união e amizade entre indivíduos e nações, tornou-se (...) a mais fértil fonte de discórdia e animosidade". Tratados já foram publicados demonstrando que o livre comércio entre nações, ao estimular a concorrência, impulsiona a inovação, a pesquisa e o investimento em melhores e mais baratos produtos e serviços. No entanto, muita gente ainda pensa que o comércio internacional apenas beneficia o lado exportador, certamente ignorando não só que os superávits comerciais nada mais são do que exportação líquida de poupança, como também as múltiplas e positivas contribuições das importações. Elas permitem que os consumidores tenham à sua disposição uma quantidade muito maior de produtos à sua escolha, com preços muitas vezes mais competitivos. Possibilitam ainda aos produtores adquirir modernas máquinas, equipamentos e matérias primas a preços menores, tornando-os mais competitivos e produtivos, o que beneficia, conseqüentemente, o trabalhador, já que maior produtividade leva a maiores salários, maior crescimento econômico e mais oportunidades de emprego. Uma das falácias mais reverberadas pelos inimigos da liberdade comercial é a de que as compras ao exterior provocam desemprego na indústria local. Neste argumento tosco, a intensa dinâmica dos mercados é negligenciada pelos protecionistas e substituída por uma visão estática, onde só os efeitos imediatos são percebidos. Para se ter uma idéia do vulto desta bobagem, falemos um pouco do que ocorre nos EUA, de longe o país onde existe o maior e mais duradouro déficit comercial da história da humanidade. De acordo com dados divulgados recentemente pelo Secretário do Tesouro, Sr. Henry Paulson Jr., os Estados Unidos têm hoje cerca de 14 milhões de pessoas empregadas no setor secundário (indústria), o que é, efetivamente, o mesmo número de 1950. Este setor era responsável, então, por aproximadamente 30% da força de trabalho do país. Hoje, ele representa não mais que 10%. Ao contrário do que se possa imaginar à primeira vista, o poderio industrial americano não decresceu junto com a mão-de-obra alocada no setor. Os EUA ainda são a maior indústria manufatureira do mundo, responsável por mais de 20% de todo o valor agregado, o que vem a ser mais do que o Japão, duas vezes mais que a Alemanha ou a China. A indústria doméstica americana é hoje sete vezes mais produtiva (em termos reais) do que era em 1950, ainda que contando com a mesma quantidade de trabalhadores alocados. Poder-se-ia pensar, à primeira vista, que esses dados escondem o aumento do nível de desemprego. Ledo engano. O que aconteceu foi que o ambiente de intensa competição provocou crescentes investimentos em pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias, o que permitiu um aumento exponencial na produtividade dos trabalhadores e, conseqüentemente, dos salários. Na medida em que as indústrias tornaram-se mais eficientes e produtivas, os produtos ficaram mais baratos, a renda per capta dos consumidores aumentou e, com ela, a demanda por serviços, cujo setor passou a absorver cada vez mais mão-de-obra, sendo hoje o responsável por cerca de 80% do mercado de trabalho. A melhor notícia, no entanto, é que estes novos empregos na indústria de serviços são muito melhores e mais valorizados que os seus predecessores. O trabalho braçal foi paulatinamente sendo substituído pelo "cerebral". (É evidente que toda essa revolução só foi possível porque, nos EUA, a legislação trabalhista é bastante flexível e dinâmica, mas isso já é assunto para outra ocasião.) Infelizmente, enquanto prevalecer a visão míope de que a abertura dos nossos mercados é alguma espécie de favor ou concessão aos outros; enquanto não enxergarmos que os maiores beneficiados somos nós mesmos, consumidores, cujo poder de compra aumenta junto com a competição e o incremento da oferta; enquanto não percebermos que o comércio, longe de ser uma guerra a ser vencida a qualquer custo, é uma ferramenta essencial para o desenvolvimento e prosperidade, nossa economia permanecerá engessada, malgrado forrando os bolsos de uma dúzia de parasitas oligopolistas e outros tantos políticos, em detrimento do resto da sociedade. Nota do Editor: João Luiz Mauad é empresário e formado em administração de empresas pela FGV/RJ.
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