"Tolerância é a conseqüência necessária da percepção de que somos pessoas falíveis: errar é humano, e estamos o tempo todo cometendo erros." (Voltaire) O filósofo Karl Popper considerava que encobrir erros é o maior pecado intelectual. Somos humanos e, portanto, falíveis. O poeta Xenófanes, que escreveu cerca de 500 anos antes de Cristo, já havia capturado esta idéia quando disse: "Verdade segura jamais homem algum conheceu ou conhecerá sobre os deuses e todas as coisas de que falo". Porém, isso não significa relativismo total, pois podemos obter conhecimento objetivo, como o poeta mesmo deixa claro depois: "Os deuses não revelaram tudo aos mortais desde o início; mas no decorrer do tempo encontramos, procurando, o melhor". Mas é a possibilidade de estarmos errados que nos faz mais tolerantes com os outros e que nos coloca sempre na busca por mais conhecimento, já que podemos defender algo que se prova errado amanhã. Tal postura é oposta àquela que Epíteto condena quando diz: "É impossível para um homem aprender aquilo que ele acha que já sabe". Com isso em mente, a crença na infalibilidade do Papa é algo extremamente perigoso. O Papa não deixa de ser um homem como outro qualquer, e crer que tudo sobre religião que este homem falível diz é a mais pura e irrefutável - além de inquestionável - verdade, é a postura de quem quer ser doutrinado em vez de pensar por conta própria. Quem aceita sem questionamento o que vem de alguma autoridade qualquer já abdicou da ferramenta epistemológica mais importante que dispomos: a razão. Acredito que um pouco de história sobre esta suposta infalibilidade papal é então de extrema importância. Afinal, até mesmo ferrovias já foram proibidas por um Papa, Gregório XVI, porque este acreditava que elas podiam fazer mal à religião. Os relatos a seguir foram extraídos do livro A Inquisição, de Michael Baigent e Richard Leigh, que por sua vez utilizaram como principal fonte o livro How the Pope Became Infallible, de August Hasler. Os autores mostram como a Igreja Católica vinha perdendo força no decorrer do século XIX, tentando reagir de diferentes maneiras. Em 1864, a "Suma de Erros" foi publicada. Era um catálogo de todas as atitudes e crenças que o Papa julgava perigosas, erradas ou heréticas. Era um erro, por exemplo, acreditar que todo indivíduo é livre para abraçar e professar aquela religião que considere verdadeira. Outro erro era a crença de que não é mais aconselhável que a religião católica seja tida como a única religião de estado, com exclusão de todas as outras formas de culto. As mudanças da Igreja vieram mesmo com o Primeiro Concílio Vaticano, reunido pelo Papa Pio IX em 1869. A atmosfera era, segundo os autores, de intimidação e ameaça, sendo que muitos eclesiásticos deixaram o Concílio antes que acabasse. Como dizem os autores, "logo ficou claro que o objetivo, o propósito dominante último do Primeiro Vaticano, era promulgar a doutrina da infalibilidade papal". No todo, 1.084 bispos eram elegíveis para assistir e votar no Concílio. Após a pressão dos defensores do Papa, a primeira votação, em 13 de julho de 1870, contou com 451 votos a favor e 88 contra a infalibilidade. Em mais alguns dias, o número dos que apoiavam a posição do Papa aumentou para 535. Em resumo, uma "maioria" de apenas 49% dos que podiam votar endossava a questão da infalibilidade em 18 de julho de 1870. Até então, os Papas eram falíveis. Deste dia em diante, seria heresia negar sua infalibilidade. Os livros e artigos que contestavam o dogma da infalibilidade papal foram automaticamente postos no Index da Inquisição, ficando proibidos aos católicos. Cerca de um ano depois, em julho de 1871, Roma tornou-se capital do recém-unificado Reino da Itália, e a Cidade do Vaticano foi declarada principado independente, não parte do solo italiano. Nos 58 anos seguintes, o Papado recusou-se a reconhecer o estado italiano, e durante todo esse tempo, nenhum Papa visitou Roma. Finalmente, em 1929, concluiu-se o Tratado de Latrão, e a Cidade do Vaticano foi oficialmente reconhecida e ratificada como estado soberano sob a lei internacional, e o catolicismo proclamado religião de estado do povo italiano. Em troca, o Papado, agora já infalível, reconhecia formalmente o governo italiano - o governo de Benito Mussolini. No mundo secular, a Igreja achava-se vulnerável, e os avanços da ciência assustavam. A infalibilidade servia para excluir todo argumento. O Papa se arrogava isento da possibilidade de erro, e isso servia para consolar os crentes mais devotos com as crescentes dúvidas que os avanços científicos lançavam sobre o Cristianismo. Como os autores lembram, "o meticuloso escrutínio da Bíblia revelou uma pletora de discrepâncias, inconsistências e repercussões alarmantemente inimigas do dogma oficial". Com isso tudo em mente, não deixa de ser impressionante ainda existirem pessoas - e muitas - que acreditam na infalibilidade papal. Um homem vai dormir como qualquer outro homem, e após o pronunciamento das palavras Habemus Papam, ele acorda um ser infalível. Foi assim que Joseph Ratzinger virou infalível como Bento XVI, da noite para o dia, pela votação de humanos. Aliás, o próprio Ratzinger, enquanto ainda não era Papa, havia afirmado que a "revelação" tinha acabado com Jesus Cristo, e que apenas a interpretação é que ainda existia. Mas esta é prerrogativa exclusiva da Igreja. Não se pode tentar interpretar por si mesmo. O mesmo Ratzinger foi quem se queixou certa vez de alguns teólogos que afirmavam que a Igreja parece ser uma construção humana. Ora, como ignorar que ela é de fato isso? Não podemos esquecer, por exemplo, que o Concílio de Nicéia votou que Jesus era divino, assim como a própria infalibilidade papal foi votada apenas em 1870. O mesmo Ratzinger teria dito que a "verdade não pode ser criada por votações". Seria cômico, não fosse tão preocupante. Em resumo, nenhum ser humano é infalível, e é o reconhecimento deste fato que nos permite maior tolerância e eterna busca pelo aprendizado. Os homens possuem a faculdade do raciocínio e devem questionar qualquer crença, buscando evidências que sustentem sua veracidade. O apelo à autoridade, ainda que de um Papa, não é um bom argumento, tampouco diz algo sobre o embasamento do que está sendo afirmado. Um argumento sólido deve se sustentar pela sua própria solidez, independente de quem o profere. Acredito que o mundo tem muito a melhorar se todos entenderem que somos todos falíveis. Errar é humano, e somos todos humanos - até mesmo o Papa. Nota do Editor: Rodrigo Constantino é economista formado pela PUC-RJ, com MBA de Finanças no IBMEC, trabalha no mercado financeiro desde 1997, como analista de empresas e depois administrador de portfolio. Autor de dois livros: Prisioneiros da Liberdade, e Estrela Cadente: As Contradições e Trapalhadas do PT, pela editora Soler. Está lançando o terceiro livro sobre as idéias de Ayn Rand, pela Documenta Histórica Editora. Membro fundador do Instituto Millenium. Articulista nos sites Diego Casagrande e Ratio pro Libertas, assim como para os Institutos Millenium e Liberal. Escreve para a Revista Voto-RS também. Possui um blog para a divulgação de seus artigos.
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