Quando a Nasa esteve me espionando com seus satélites, alguma lei internacional foi violada? Desde quando o Pentágono adquiriu o direito de direcionar sua lupa sobre o meu quintal? Quem me indenizará por todos os passos que dei na privacidade da minha chácara, acreditando estarmos somente eu e Deus, escondidos no meio do mato, ou nem tanto!? Quando abri a braguilha e reguei os pés de milho, ou mesmo quando estive bem acompanhado entre as árvores e debaixo das estrelas invisíveis adsorvidas no céu azul, os vigilantes anônimos estiveram me profanando, com que ordem? A que espécie de tribunal apelarei contra essa violência silenciosa, que me apresenta desnudo ao mundo, deitado na relva da clareira da minha pequena floresta? Essa violência não será justiçada, pois conhecemos os homens, as nações e suas leis. O mundo sempre esteve sob o domínio de uns senhores sem coração, cuja arma mais afiada e eficaz era o seu sistema de informações. As ferramentas evoluíram, e agora os espiões estão confortavelmente tomando chá no edifício de cinco pontas, direcionando seus grandes olhos gordos para o que lhes interesse sobre a superfície terrena. O que dói mais não é ter perdido definitivamente a privacidade, mesmo naqueles esconderijos mais recônditos, onde me era dado estar apenas eu, o vento e as árvores. Já privei bastante, mesmo quando não estava realmente privando — agora sei que havia olhos sobre minha nudez — pois a inocência me deu esse privilégio de viver a realidade tal qual a senti, não como ela foi vista pelos voyeurs. Um dia a gente descobre valores mais fundamentais que a individualidade, e mesmo mais caros que a liberdade. Ultimamente estou pensando em sobrevivência, e o que me assusta ao rodar a esfera do programa da Nasa é ver que uma velha profecia dos ecologistas já foi ultrapassada em muito pela realidade. Digite o nome do Rio de Janeiro, olhe lá embaixo aquela massa de cimento incrustada na borda dos morros. Veja como as construções humanas pouco diferem dos corais à beira-mar. Alastram-se formando um novo tipo de rochedo, uma crosta grossa e feia tomando conta das praias, dos recantos naturais, encurralando os rios, espremendo os bosques. Do alto satélite notamos como se desenha uma metrópole, nos mesmos moldes dos corais, espalhando seu emaranhado de edifícios, desenvolvendo em espaços restritos os seus limites até um estado de saturação. Paris, Londres, Berlim, orgulhosas cidades, conurbações que se alastram com seus tentáculos num território europeu já maltratado por milênios de civilização! Olhe de cima, do satélite da Nasa, perceba como estão se entupindo as veias desta esfera outrora vibrante e saudável, depois saia para fora de casa e sinta o calor escaldante, e então pergunte “por quê?”. Veja Nova York, como se desloca para o Oeste, conquistando todos os territórios dos índios, uma massa de cimento quase homogênea que se expande impiedosa sobre o deserto de uma floresta desaparecida. As figuras ficam desfocadas a 100 metros de altura. Mas nos escritórios da Nasa eles têm alta definição. Vêem o cravo que se instalou no nariz da modelo que passeia pelas ruas de Paris. Como a internet, que vêm expondo inapelavelmente os crimes hediondos cometidos pelas autoridades norte-americanas, esse meticuloso trabalho de espionagem global também trará seus benefícios à humanidade. Finalmente podemos ver, com um realismo jamais imaginado, o resultado de todo o esforço humano sobre a crosta terrestre: a imagem melancólica de um câncer que se alastra sem remédio e sem piedade. Não tenho mais dúvida, o planeta caminha para o colapso, mas meu filho que está com 4 meses na barriga da mãe virá nos salvar, por isso não fique demasiado nervoso, amigo leitor. A figura da Terra redonda impressiona quando saio da minha minúscula Prudentópolis, no sertão do Paraná, e desloco-me na velocidade de 5 mil km/s para uma visão tridimensional da Cordilheira do Himalaia, especificamente, o Monte Everest. Dois clics no mouse e já me encontro em Buenos Aires, descobrindo como estamos irremediavelmente integrados junto ao todo que se desagrega.
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