Esta é uma típica pequena história de classe média paulistana, dessas que ainda vão acabar levando muita gente para uma temporada no campo, com fins de reeducação social. Reeducadores gostam muito de reeducar as pessoas no campo, principalmente se elas forem da cidade. Porque, se elas já forem do campo antes da reeducação, já não podem mais ser reeducadas e é melhor ir passando fogo nelas logo. Eu nunca entendi isso. Normalmente, os reeducadores reeducam as pessoas da cidade no campo para que elas libertem o camponês que há dentro de cada uma delas, o que as transformaria em pessoas fofas. Por outro lado, os reeducadores parecem não gostar muito de um camponês pronto e acabado quando vêem um de verdade na frente. Como os reeducandos da cidade vão, aos poucos, se tornando camponeses, chega-se inevitavelmente ao ponto em que já não é mais possível reeducá-los. Acho que é por isso que os reeducadores acabam passando fogo em todo mundo logo e pronto. Tem sua lógica. Mas voltemos à historieta. Trata-se de descrever um ritual que se passava também na abertura da Copa do Mundo, mas que na das Olimpíadas era muito melhor. Isso porque há muito mais países nas Olimpíadas. Assim, suas cerimônias de abertura têm desfiles muito maiores, com mais bandeiras e com um monte de delegações que nem sonham em ir à Copa. Graças a essa disponibilidade de nações e cores, a coisa ficava mais engraçada. Consistia em algo mais ou menos assim: essas festas quase sempre ocorrem, no horário brasileiro, pela manhã. Na data de abertura dos Jogos reuníamos-nos ao longo da comprida mesa da sala de estar; meu pai, eu e meus irmãos. Precavidos, a essa altura já havíamos conseguido e disposto coisas boas para se comer. Coisas como gorgonzola, azeite, salame, pão italiano, lingüiça calabresa, azeite, parmesão, berinjela curtida no azeite, azeitonas, requeijão, leite, coca-cola, azeite e, ainda, um pouco de um ou outro azeite mais especial. Nós utilizávamos apenas uma das metades da mesa, de modo que tudo ficava agradavelmente atulhado. Ajeitávamos-nos diante da pequena televisão colocada um pouco depois do centro do sólido tampo de cerejeira (isso é para vocês verem como a coisa já começava politicamente incorreta), símbolo de uma época de prosperidade que já ia distante. Tudo isso era assim espremido porque não tínhamos mais o controle-remoto daquele aparelho. Como já disse, estávamos meio que na merda. Uma mãozinha de coçar as costas fazia as vezes do controle, graças à surpreendente habilidade de meu pai em contornar potes, evitar copos e suplantar patês. Funcionava 80% do tempo. Quando dava errado (cerca de uma a cada cinco tentativas de trocar de canal, aumentar ou diminuir o volume ou mesmo ajustar a imagem), a culpa era nossa, “uns filhas de uma puta que não sabiam onde colocar o copo direito” e a respeito dos quais não se sabia dizer “por que não enfiavam os copos todos bem dentro do meio do cu”. Mas tudo bem. Limpava-se a mesa, repunham-se os itens perdidos e preparava-se o espírito para outra. Meu pai ajudava levantando os braços, erguendo o seu copo e um exemplar de “O Coruja”, enquanto o idiota responsável pelo desastre recolhia os dejetos e passava um pano no local do desastre. Bom, primeiro são aquelas músicas, aquelas apresentações cênicas, aqueles discursos e coisa e tal. Até aí a coisa prosseguia sem grandes transtornos e ameaças ao direito internacional, à liberdade das nações e à fraternidade entre os povos de toda a Terra. Mas, como estávamos no Cambuci, esse estado meio anódino de coisas não poderia mesmo se sustentar por muito tempo. Para o azar do COI, as delegações começam a desfilar sempre um pouco depois do meio-dia, horário do Cambuci. Como qualquer pessoa civilizada sabe, meio-dia é o horário a partir do qual é decente e permitido beber uns destilados, caso se esteja de folga. Entre as 10:00 e as 12:00, admite-se apenas cervejinhas. Depois do meio-dia, vale tudo. E meu pai mandava buscar uma inviolada garrafa de Wild Turkey. Ótima escolha. A única vantagem de se beber qualquer outra coisa além de Wild Turkey é que essas escapadelas nos permitem perceber o quanto teria sido mais sensata, uma vez mais, a opção pelo velho e bom Peru Selvagem. E as garrafas vinham à mesa sempre invioladas porque, depois de abertas, eram perfeitamente honradas. Se é que vocês me entendem. Uma vez destampada a garrafa, o ambiente todo melhorava substancialmente. A começar pelo cheiro de madeira que preenche o ar quando essas garrafas são abertas. A terminar pelo tipo de coisa que acontece quando alguém ingere um pouco daquele líquido brilhante e honesto. Naquelas ocasiões, ele acabava por despertar em meu imenso e gordo pai o melhor de seu espírito olímpico. Vejamos só no que isso costumava resultar. Uma das primeiras delegações a entrar é sempre a da Albânia. Meu pai era muito suscetível a essa história de Albânia. Como jamais conseguiu guardar qualquer opinião para si, por mais indiscreta que fosse, rapidamente ele passava a emitir os juízos mais variados a respeito da pequenina nação maoísta. E, coisa estranha: ele começava pelo acessório. “O João Amazonas, ele segue a linha da Albânia, aquele filha da puta”. Isso mesmo. A presença de João Amazonas nas hostes albanesas (ou albinas, como dizia o Gordo depois da quarta dose) depunha fortemente contra a Albânia. Vindo de um brizolista capaz de votar em Jânio, isso sempre foi o suficiente para garantir um “Raça de Filha da Puta que é albanês”. Bom, como boa parte do leste europeu é povoada por eslavos que, mais tarde, ao longo do desfile, revelar-se-iam nada menos do que “uns comunistas filhas da puta”, logo ficávamos sabendo que não somente os albinos, mas também todos os eslavos, maoístas ou não, não passavam de uma “Raça de filhas da puta”. Assim mesmo, “filhas da puta”, de modo que compreendo até hoje que a mãe de todas elas, as raças, era a mesma. Ninguém jamais foi poupado. As coisas que eram ditas sobre os povos da África, branca ou negra, valeriam várias e várias crônicas. Enganam-se os que imaginam que, em relação aos negros, ele se ativesse àqueles estereótipos tão finos cuja utilização hoje em dia se quer ver banida. Isso seria falta de originalidade. Pior, seria desnecessário. Muito melhor era erigir grandes fantasias acerca de determinadas nações e, então, partir para as ilações mais insólitas que se possa imaginar. Por exemplo: por algum motivo, Senegal era a “Terra do Lothar, o príncipe de ébano assistente do Mandrake e grande filha da puta”. Os camaradas de Gana estavam todos mentindo na idade e, por isso, tinham a mãe na zona também. Os gentílicos eram sempre de grande valia, porque meu pai achava que podia fazer com eles o que bem entendesse. Uma das últimas delegações a desfilar era a da Zâmbia, com sua tradicional coleção de atletas repleta daqueles representantes da “Raça de Filha da Puta que é zumbi”. É bem verdade que, na letra “z”, o Wild Turkey já havia dado quase tudo de si. E ninguém jamais poderia lhe acusar de perseguição a quem quer que fosse, como se verá adiante. Tínhamos que tomar o maior cuidado com a delegação da Alemanha, porque ela provavelmente viria armada até os dentes e bêbada. Os israelenses jamais renderiam um único atleta de ponta, porque esse era um castigo divino, uma reprimenda de Jeová (assim mesmo, Jeová) a sabe lá Deus o quê. Essa maldição era, por motivos até hoje inexplicados e inexplicáveis, estendida aos árabes, outra “raça” cuja honestidade maternal era atacada pelas costas assim, de surpresa. Cuba. Sim, meu pai gostava de Cuba e fazia todas aquelas piadas sobre o vôlei feminino de Cuba: ele queria ver as moças de Cuba lançando. Os orientais eram todos tomados por chineses; mas isso, tenho certeza, era só para ganhar tempo. Atacava-se despropositada e violentamente as noções de higiene de todos os povos ditos amarelos e, de quebra, o gosto que eu e meus irmãos tínhamos pela “horrenda e mal-cheirosa comida chinesa à base de peixes crus e ovas de adolescentes virgens e sacrificiais”, numa afirmação reveladora e no mínimo polêmica sobre as diversas culinárias orientais (chinesas, portanto). No final, eram todos eles, em separado e um a um, umas “Raças de filhas da puta”. A Itália recebia um tratamento realmente duro. Lá as pessoas são muito ligadas às mães, e por isso todos os italianos são uns bostas. Prova disso é que o Vasco, time de portugueses ligados aos pais, nunca passou pelas privações às quais o Palmeiras se submete até hoje. Os italianos eram xingados de safados, vagabundos, ladrões, fedidos e tudo o mais que os italianos supostamente costumariam atribuir aos nordestinos, porque além de tudo eles eram racistas. E isso porque o próprio Gordo era, ora vejam só, neto de italianos. Isso tinha que ser assim porque o Palmeiras andava mal. Coisa do outro mundo. Os portugueses, uns mesquinhos (essa é sem dúvida a maior injustiça) e os espanhóis, os maiores cretinos do mundo. As mulheres espanholas são lindíssimas, mas não têm bunda e não olham para a gente na rua, e as canelas delas se parecem com palmitos. E aquelas bichonas gregas? Os franceses, uns camaradas que sempre roubam no jogo. Afora isso, toda francesa adora sexo anal, o que é uma pena diante do fato de que elas jamais se depilam. Diante disso tudo, não se pode negar que são todos uma “Raça de Filha da Puta”. Os ingleses, “Pais da Civilização”, e Londres, “A Capital do Universo”. “God save the Queen” e “Raça de Filha da Puta que é inglês”, como inglês ninguém pode ser tão filha da puta. Nem americano. E olha que americano é uma “Raça de Filha da Puta” como nenhuma outra. Os peruanos, bolivianos e chilenos eram todos uns índios. Como se sabe, índio é japonês, o que equivale a dizer: índio é tudo chinês. E, os chineses, bom, vocês já sabem né? Não dá para confiar. Lembrem-se de Pearl Harbor. E assim íamos indo tarde adentro, até àquela hora em que deveríamos aprender um pouco sobre a gente de Zâmbia e que já foi citada lá em cima. Mais ou menos por aí acabavam o Bourbon e a festa. Convenhamos que não era pouco. A sala então já se convertera num cenário de terra arrasada: potes vazios, toalha manchada, copos abandonados a esmo, nódoas de gordura em quase tudo e todos, cinzeiros espalhados por todo o cômodo e minha mãe louca da vida com a bagunça, dizendo que ia embora daquela casa e que nunca mais iria voltar; que os italianos, se fossem filhas da puta, eram só os do lado do meu pai (uns mangia polenta, segundo ela) e que quando ela morresse daquilo todo mundo iria se lamentar e dizer a si mesmo: ah, ela era tão boa e a gente fez isso com ela. E, como não era o caso de se levar nada disso a sério, a gente então levantava e ia procurar outra coisa divertida de se fazer. Que era para não negar a raça. Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.
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