1916
Quatro horas da manhã. Maria acorda e se levanta silenciosamente para não despertar nenhum dos seus cinco filhos. Viúva, trabalha doze horas diárias numa fábrica de sapatos para dar comida às crianças e à mãe doente. Sua vida: infância pobre no campo, casamento precoce, partos ininterruptos e viuvez inesperada. Maria é, enfim, uma mulher sofrida e conformada. Giácomo Barelli. Depois dele, a vida de Maria e dos outros operários que vendiam mais da metade de seus dias em troca de parcos salários mudou. As idéias que o homem trouxe de seu país modificaram a visão que os trabalhadores tinham sobre a vida e a injustiça das coisas. Maria é uma anarco-sindicalista. Agora, depois das desumanas jornadas de trabalho, Maria não volta para casa. Vai às reuniões do movimento, ajuda a elaborar panfletos, discute ações para reivindicar direitos. Sua vida não é mais só sua, de seus filhos e de sua mãe: é de todos os trabalhadores e trabalhadoras. A greve. Maria lutou muito para convencer seus companheiros a aderir à manifestação. O envolvimento foi tanto, que a operária se esqueceu de ser discreta. E veio o dia. E veio a polícia. E vieram as demissões. E Maria foi. Mas a luta não terminou. Apesar de não ser mais operária, Maria ainda participava de reuniões e piquetes ao lado dos trabalhadores. Mesmo não tendo mais patrões - lavava e passava roupas para fora - ainda almejava um mundo sem a existência deles. Quando veio a tuberculose e os dias de cama, Maria também não parou de lutar: ensinava aos filhos como a vida era e como poderia ser. Morreu dormindo. Mas viveu nos sonhos de seus meninos. 1966 Duas horas da manhã. Maria não dorme há dois dias. Desde que entrou para a clandestinidade não vê os dois filhos que moram com a avó. O marido está preso, ou morto, ou os dois. Mas Maria sai. Vai se encontrar com outros companheiros para articular alguns planos. Uma desapropriação, um seqüestro. Maria vai. Antes era bancária. Mexia com dinheiro, dinheiro que não era seu nem de ninguém como ela. Isso enfurecia Maria. Tanto dinheiro passando em suas mãos e nada no seu bolso nem no dos pobres coitados que atendia todo dia. Maria - ninguém sabia - era comunista. O golpe. Maria foi uma das que foram para a rua e não encontrou ninguém. Estariam dormindo, com os rádios e televisores desligados? Não, Maria. Ninguém estava surdo. Ela e o marido se juntaram a outros. Largaram o trabalho - ela: a luta..., ele: aposentado compulsoriamente. Depois de algum tempo, quando os amigos começaram a desaparecer e os militares a endurecer, Maria virou Dóris. Passou a morar num apartamento escondido na periferia, longe da família e do marido, que morava do outro lado da cidade. A mãe de Maria, ou Dóris, não entendia como a filha podia largar as crianças em nome de uma causa que, para ela, nunca ia se tornar realidade, era uma utopia. Mas Maria acreditava. Tudo era questão de tempo, e haveria um mundo mais justo para todos. Na luta, Maria também sentia que fazia o seu melhor papel de mãe. Quando o marido sumiu, Maria ficou atônita. E por incrível que pareça entrou na resistência com mais força. Ela, que antes ficava apenas na parte idealizadora das ações, passou a ir para a rua. E foi num desses dias que, às duas horas da manhã, caiu em uma emboscada. No outro dia, seus filhos a viram no jornal. E nunca mais esqueceram. 2006 Oito horas da manhã. Maria monta sua barraca no centro da cidade. É camelô desde que o marido morreu e a única coisa que lhe deixou foi a barraca de balas e chicletes. Quando o rapa não aparece, Maria vende razoavelmente e sustenta a filha e a neta, as poucas pessoas com as quais convive. Maria sobrevive. Quando o marido ainda era vivo, Maria era do lar. Cuidava da filha e da casa, até a menina engravidar sabe-se lá de quem e a neta ser mais uma de suas obrigações. Mas Maria não ligou, sentia-se feliz. Todo dia limpava tudo e ia assistir TV. Divertia-se tanto! Gostava especialmente dos programas feitos por e para mulheres. Também das novelas. Às vezes o Jornal Nacional, mas este ela preferia não ver e ir fazer o jantar. Tanta violência! Agora a TV vive desligada. Maria não tem tempo. Nem para pensar e chegar à conclusão inevitável de que já não é feliz. Nem para pensar e chegar à conclusão também inevitável de que poderia ser diferente. Muito menos para pensar e chegar à conclusão igualmente inevitável de que poderia fazer alguma coisa, por ela e pelos outros como ela. Um dia Maria vai morrer. Atropelada por um ônibus. Sua filha herdará a barraca. E, sim, lembrará de Maria. Às vezes durante o programa da Sônia Abrão, ou quando o movimento da barraca estiver tão intenso que precise de ajuda. E sempre no Dia das Mães. Nota do Editor: Maria Madureira é jornalista.
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