(Ao meu querido Eduardo Galeano)
Todos somos reféns de incômodas contradições, seja por vício, paixão ou berço. Eu mesmo, assumido ecologista desde que fiquei em recuperação em Biologia na 7ª série; eu, defensor perpétuo de idílico rastro de Mata Atlântica no litoral paulista; eu, que reciclo meu lixo desde muito antes das coletas seletivas; eu, tão afeito à defesa do coletivo, sobremaneira da Natureza; sim, meu amigo, eu sou um aquarista! Consegui! Confessei-me publicamente. Enfim, exposto diante desta minha nódoa, assumo este desvio de caráter! Aquarista! Zeloso, estudioso, dedicado, mas que mantém, sim, cativos e dependentes, em pequena jaula vítrea, alguns espécimes que sequer existem na Natureza, vítimas que são de cruzamentos de criadores a partir de já remotas matrizes de ciclídeos africanos dos lagos Tanganica e Vitória. Sou aquarista desde os quatro, talvez cinco anos, quando um peixe dourado durou uns fragmentos de memória em um pequeno aquário redondo que eu mesmo quebrei. Anos depois, herdaria do pai e dos irmãos mais velhos a paixão pelas cubas. Hoje, sou pai de um garoto, vejo-me mais maduro, consciente e atuante. Ainda assim, mantenho o vício. Em minha sala, resta uma pequena cuba de oitenta litros, habitada por peixes que ali foram postos bem filhotes no fim da gestação de meu próprio filho que, ao chegar da maternidade, foi saudado pelo relaxante borbulhar daquele recém-parido microcosmo montado, à guisa de tocas, com rochas recolhidas pela vida vivida em lugares extraordinários, compondo um imóvel cenário de vivências para simular uma outra vida em confinamento. Relicário feito com todo esmero! Eis que um dos dois restantes daquele cardume vário de pequenos alevinos, um dos dois sobreviventes que em sua robustez já era exuberante, apareceu doente. Causou-me alarde no coração ver traços avançados da doença em suas diáfanas nadadeiras e em suas escamas reluzentes. Atendendo ao primeiro instinto, corri ao armário da lavanderia. Mas, oh, fatídica fortuna, o remédio acabara. O segundo instinto: sair em disparada rumo à loja que fecharia em dez minutos. Mas o duro choque das contingências deteu os instintos diante da minha total indisponibilidade de recursos! Não me abati, com armário e bolso vazios, socorri-me de um amigo também aquarista que, na noite seguinte, trouxe e administrou o remédio. Mas já era tarde! Ah, pequeno, trágico e prosaico incidente doméstico: morto em cativeiro, antes de completar dois anos de vida, pesando não mais do que duzentos gramas, jaz na tubulação do esgoto da grande metrópole, morto pela impotência deste algoz, um pequeno ciclídeo que respondia pelo nome de Utopia!
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