É comum separar-se naturalmente a cultura de suas relações próximas e íntimas com o terreno da educação. Para alguns, há um espaço para a arte e outro para a educação. E um independe do outro, assim como o outro independe do um. Nesses tempos, porém, em que a política do MINC privilegia uma articulação com o MEC, em ações e parcerias, faz-se mister rever tal postulação. Cultura, em seu sentido mais estrito, compreende o trânsito artístico de bens simbólicos, enquadrando nesse conceito tanto o fazer cultural, propriamente dito, como a construção de conhecimento e técnicas de absorção do mesmo. Já a educação é geralmente limitada ao seu viés formal, aos bancos e demais compartimentos das escolas. A incompatibilidade surge do confronto entre esses dois paradigmas. Não enjeitemos a definição de cultura, apenas revisemos e aprofundemos o nosso diagnóstico de escola. Até onde educação e escola são sinônimos? Ou caso não o sejam, como caracterizar uma educação extra-escolar ou não escolar? O que significa tornar alguém culto? Culto, segundo o Aurélio, carrega duas acepções: 1- que tem cultura, instruído, ilustrado 2- civilizado, adiantado Ora, vulgarmente, preenche-se o termo cultura como se este, de uma forma ou de outra, devesse ser produto de uma ação cognitiva de instrução, transmitida pelo “oligopólio” que comporta mestres, doutores e afins. Justamente nesse ponto encontra-se o fator decisivo de confusão dos dois movimentos: a ação cultural e o périplo educacional. A cultura, por mais que delimitemos seu conceito, tornando-a parte de uma estrutura disciplinar, isto é, integrando-a ao ato de instrução e agregando-a a uma grade curricular oficial, não traz como resultado nem pressuposto, apenas, a aculturação do indivíduo, tornando-o civilizado e polido, preparado para uma competição inerente ao cotidiano humano. Ao mesmo tempo em que os realizadores culturais podem ser equiparados a mestres, eles também trazem em si mesmos a semente embrionária da sua própria negação. Expliquemos: os mestres passam adiante um ofício, um conhecimento sobre algum objeto com o qual possuem laços de afinidade, ao fazê-lo, todavia, aguçam no educando um sentido de auto-determinação. Em outras palavras, a cultura emprenha o ato cognitivo de aprendizado de uma visão perturbadora, até certo momento, constrangedora e, por mais ficcional que seja, de um realismo transgressor. A cultura, assim, passa a um estágio menos instrutivo e mais “insurreicional”, pois ao passo que a educação formal tende a instruir, apaziguar e adequar o indivíduo ao sistema, aquela remete ao caminho inverso: à desconstrução dos conteúdos apreendidos, ao questionamento dos mesmos e à colisão dos indivíduos com seus próprios valores mais arraigados. Essa trajetória ocorre não eventualmente como nos bancos escolares, mas é requisito para que se estabeleça uma certa consistência no fazer cultural. Não há arte simplesmente alienante, pois seja num palco, seja num livro, ou em qualquer forma de expressão artística, persistem elementos desagregadores e reativos, distintos daqueles pertencentes aos parques de instrução formal. Isso, ao nosso ver, por dois motivos basilares: em qualquer ambiente educa-se segundo parâmetros e referenciais pré-existentes, no meio artístico a pré-existência de ilações entre expectador e produto cultural serve mais de um mote, um ponto de partida do que um porto seguro de chegada. Por outro lado, o setor cultural, enquanto entretenimento, tende a rechaçar adequações e estigmatizações de qualquer sorte. O autor, ao direcionar-se em prol da inovação e da criatividade, transforma a realidade de modo imperativo, mesmo ao procurar reforçar determinado comportamento, reiterado socialmente, ele não o faz seguindo uma cartilha ou uma regulação normativa, ele traduz o real de modo “estilizado”, conforme a sua própria necessidade de sinergia com o público. Podemos perceber isso claramente na comédia, na caricatura, no hip-hop, no tecno-brega e, em maior ou menor grau, em todos os campos de projeção cultural. O realizador cultural cria, nunca a partir do zero absoluto, enquanto o educador formal prestigia o seu conhecimento que deve ser reverenciado e absorvido, dentro logicamente de um diálogo não impositivo, porém, também não mutacional. O educador deixa ao bel-prazer do educando a informação consumada em todos os seus estágios de depuração, serve-lhe dos subsídios para sua formação integral, entretanto, apenas no produto cultural este mesmo educando encontrará armas para se inserir e se rebelar contra o “status quo”. A educação, portanto, necessita trabalhar paralelamente aos projetos culturais, não somente pela ação reflexiva, que se apresenta diferentemente em ambos, mas principalmente pelo aspecto de confirmação, ou não, in locu, dos valores transmitidos na tarefa de ensinar e na sua contrapartida, o aprender. Não almejamos indivíduos que saibam diferir um Matisse de um Pollock, ou uma obra clássica de uma contemporânea, precisamos, mais do que tudo, de educandos capazes de se compreender e se reinventar como cidadãos a partir de toda e qualquer obra de arte. A cultura não é absorvida, ela é dividida, compartilhada e transformada, sempre se levando em conta uma perspectiva criacionista de ambas as partes, autor e expectador. Paulo Freire já colocava, com propriedade, que os homens se educam entre si, mediados pelo mundo. A cultura é exatamente um dos canais de mediação com o mundo mais relevante e significativo. Nota do Editor: Marcos André Carvalho Lins é bacharel em Direito formado na Universidade Federal de Pernambuco e ocupa o cargo de Técnico Judiciário Federal no TRT – 6ª Região (Pernambuco), sendo também escritor diletante.
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