Desde criança, sempre desejei um piano Steinway & Sons de cauda inteira, cujo valor equivale ao de um bom apartamento de três quartos na zona sul do Rio de Janeiro (RJ). Um instrumento maravilhoso e uma aspiração legítima, mas nem por isso vou encostar um caminhão na porta de uma loja musical e, ajudado por meia dúzia de companheiros de musculação, levá-lo para casa, pois estarei infringindo a lei, por ferir o direito de propriedade estabelecido constitucionalmente. Onde não se respeita esse princípio - que, ao lado dos direitos à vida e à liberdade, é basilar na sociedade -, a lei do mais forte passa a regular as relações pessoais: Setembrino é um "sem-mulher" e deseja casar-se - o que é legítimo - mas, por isso, como é forte, rapta a noiva de Xerxes, que é fraco; Pafúncio não tem cabelos, mas desejaria tê-los - o que também é legítimo - e, sendo assim, avança sobre Menelau e, tesoura nas mãos, tosa-lhe a vasta cabeleira; Criméia gostaria de usar os perfumes franceses de Penélope e, como seu desejo é legítimo, rouba-os; Melquisedeque sempre desejou uma Ferrari testa rossa e, como não ganha para tal e seus arroubos de pilotar são legítimos, furta-a de Nabucodonosor, que é diretor de uma empresa próspera... Imaginem que tipo de sociedade seria resultante de uma visão torta desse tipo! É claro que o desejo de possuir um ótimo piano, de casar-se, de ter cabelos, de usar bons perfumes e de dirigir um carro esportivo, como de resto o de ter a posse de um bem qualquer, é legítimo, mas o que importa não é isso porém, a forma como esse desejo se realiza. Roubar ainda é crime! No entanto, no país do faz-de-conta em que o Brasil está transformado - uma autêntica terra sem lei -, se os pianistas, Setembrinos, Pafúncios e Criméias conseguirem organizar os que possuem suas mesmas aspirações em "movimentos sociais", terão respaldo do governo, que "legitimará" os delitos que cometerem e ainda por cima colocará a culpa nas "elites", nos "ricos" e - naturalmente - no "neoliberalismo excludente". Claro, nas cabeças povoadas de minhocas de muitos dos que teriam obrigação de zelar pelo cumprimento da lei, Setembrino não tem noiva porque Xerxes, que possui uma gorda conta bancária, o impede; Pafúncio é careca porque Bush arrancou-lhe os cabelos e Criméia não pode comprar perfumes de grife porque é "explorada" pela perua Penélope. Tais considerações vêm a propósito de três fenômenos impensáveis em uma sociedade onde se preza a lei, mas que vêm sendo não apenas tolerados, como - o que é um verdadeiro crime - incentivados, mesmo que por omissão, por nossas autoridades. O primeiro são as invasões aos montes perpetradas pelos ditos "sem-teto" em diversas grandes cidades brasileiras, sob a benção da secretária nacional de Habitação que as qualificou como "legítimas". Sim, segundo a referida ministra-"heroína", "não pode haver gente sem moradia num país onde outros têm imóveis demais"... Ora bolas, penso que, ao invés de dizer abobrinhas (estragadas) como essa, seu papel seria o de construir habitações populares e, caso o ministro da Fazenda lhe negasse os recursos para tal, o de pedir o boné e largar o cargo, por imposição do que conhecemos, há séculos e simplesmente, como dignidade. O segundo é o Largo do Boticário, tombado pelo patrimônio histórico e cultural, um dos símbolos do Rio antigo, que está com uma de suas casas invadida há um ano por dezenas de "sem-teto", que se mostraram também sem-vergonhas, ao tentarem organizar uma festa rave cobrando ingresso, no que foram impedidos pela polícia. Por que o governo do Rio ainda não os expulsou de lá? Como, caro leitor, levá-los para onde? Ora, não existe uma secretaria de Habitação, recheada de políticos e apadrinhados, encarregada exatamente de resolver problemas graves como esse? Por fim, temos as invasões dos arruaceiros "sem-terra", engolidas e até estimuladas pelo governo e por pseudo-acadêmicos marxistas. A "função social da terra" é uma filigrana jurídica, um arabesco redundante: galinhas, vacas, porcos, jacas, açaís, mangabas, eleitores, professoras, cidadãos, clubes de futebol, médicos, prostitutas, tudo, enfim, o que existe na sociedade tem uma "função social"... Uma filigrana, um arabesco, uma bordadura e um enfeite de estilo rococó, usado sub-repticiamente para encobrir a finalidade dos que estimulam as invasões, que é a de estabelecer aqui o socialismo, sistema que fracassou redondamente em todas as sociedades que tiveram o infortúnio de tentá-lo. Madonna mia, ser brasileiro tem sido um permanente e exaustivo exercício de paciência! Nota do Editor: Ubiratan Jorge Iorio é Doutor em Economia (EPGE/FGV), Vice-Presidente Executivo do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista (Cieep), Diretor da ITC IORIO TREINAMENTO E CONSULTORIA e Professor da UERJ, da FGV, da PUC.
|