No dia em que fiz 70 anos conversei a tarde inteira com minha mãe, 93. Entre longas histórias, ela me contou que conheceu meu pai quando ele tocava violino no coro da igreja de São José, em Chã Grande (PE), onde ela era corista, aos 15 anos, sempre muito vigiada pelo pai. Aos 16, eles se casaram e foram felizes para sempre. Fui o sexto de dez filhos e metade já se foi. Nasci às duas horas da madrugada de 12 de janeiro, pouco tempo depois que meu pai saiu às pressas para chamar a parteira. Quando ela chegou, eu já estava ao lado, quietinho, foi só cortar o umbigo e iniciar os procedimentos de praxe. O nome dela era Maria Coveira, mas minha mãe não sabe dizer se o apelido tinha alguma relação com o histórico de seus partos, praticamente todos de Gravatá, naquele longínquo 1937. Ao vir ao mundo, segundo minha mãe, eu não chorei. Ela não sabe explicar, porém, se essa paciência, essa quietude, tem relação com a tranqüilidade que até hoje caracteriza meu comportamento, ou se já era uma estratégia capricorniana de quem gosta de conseguir as coisas de forma discreta, mas obstinada. Ela mesma - lembra - cuidou dos filhos com incrível dedicação, vencendo todas as vicissitudes, ora como professora primária, ora como costureira, cozinheira e sempre como beata incorrigível, ajudando o marido sacristão. Talvez por esse mesmo desígnio nunca a vi chorar, nem mesmo quando repartia literalmente o feijão, o arroz e a mistura, fazendo ela mesma o prato de cada um, para evitar que os mais espertos se apoderassem da maior parte. E o prato dela? Ah, ninguém precisava se preocupar. Era assunto pra depois. Nem hoje ela admite, mas ela comia pelas beiradas, ou enquanto provava. Ainda não havia queixas contra exploração do trabalho infantil. Assim, para suprir nossas pequenas necessidades, ela nos arranjava bico de balconista de tecidos, de farmácia, de bilheteiro de cinema - qualquer atividade que ajudasse. Foi assim que aprendi a comprar meus próprios sapatos desde os 10 ou 12 anos de idade. E o mesmo aconteceu com os outros irmãos e irmãs. Ela mesma costurava nossas roupas e ainda hoje faz colcha de retalhos e fuxico - não intriga, mas cerzidura - sem usar óculos. Por força do hábito, logo cedinho quer fazer café. Acende o fogo para ferver a água e sai para varrer seu jardim. Quando volta, a panela está seca e começa a briga diária das filhas na inútil tentativa de proibi-la de cozinhar. A parte mais difícil é quando me despeço. Fingindo frieza, ela me adverte: - Na próxima vez que você vier não estarei mais aqui. Diz isso todos os anos, há 42, quando retorno à companhia dos meus dois filhos, genro, minha adorada nora e cinco netos paulistanos. Esta é Maria José Gomes Tiné, conhecida como D. Nita. Não é tudo sobre minha mãe, pois não sou nenhum Almodóvar. É muito pouco, para quem fez tudo pelos filhos, sem jamais pensar em si mesma. Nota do Editor: Flávio Tiné é jornalista que acaba de lançar "As Boas Lembranças da Luta", memórias em forma de crônicas.
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