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SEÇÃO
Crônicas
03/05/2007 - 20h19
Sopa de inverno
Nei Duclós
 

A presença da mãe, na beira da cama, era a garantia da cura. Os remédios serviam apenas para atrapalhar, causar desconforto, nos lembrar que estávamos caídos. O que valia era a companhia poderosa de quem se dividia entre tantos filhos e responsabilidades. E o melhor: aquele gesto, que atendia a um pedido fundo, era por tempo indeterminado, já que o doente sempre gozava de privilégios. Quando ela mergulhava o rosto na mão exausta, sustentada pelo braço frágil e ao mesmo tempo firme, quando chegava bem perto seu rosto preocupado, ou deixava cair seu cabelo para a frente, a sugerir abandono (o que fazer com tantos problemas?), é que então sentíamos ser possível voltar à vida plena.

E ela só saía de perto do moleque enfermo depois de muita negociação. Ou quando enfim dormíamos, entre temperaturas excessivas no corpo ardente, chiados no peito, coriza interminável. Cada gripe, febre, corte ou susto nos atirava no território lúgubre do desespero. Uma dor de garganta nos empurrava para o orfanato, a não ser que a mãe surgisse na porta do quarto, a garantir a continuidade das coisas que de repente tinham ido embora. A cura pela presença materna é mais uma prova do que dizia meu pai. Ele insistia: tudo o que dizíamos sofrer não passava de manha. Isso mais tarde foi batizado de carência, mas na nossa infância não lidávamos com palavras tão complicadas.

As exigências aumentavam no Inverno, quando o vento polar batia nas frestas, e a geada brotava junto com o rubor de orelhas e faces. Não havia cobertor que nos livrasse da provação. A lenha, cortada em rodízio pelos que mantinham ainda a saúde, era consumida vorazmente pelo frio que viera para ficar. Naquele tempo, não havia o que hoje é comum: mês de julho com calor e outras excentricidades. A temperatura baixava em março e só levantava a cabeça em novembro.

Revezando com a mãe, o médico da família fazia sua visita, mas havia uma certa impessoalidade no seu cabelo lambido para trás, seu olhar manso e suas certezas, que me colocavam de quarentena. Ele sorria por motivos que desconheço, pois me receitava dietas de sal por meses e me cercava de cataplasmas, uma invenção que felizmente ficou no passado. O reforço eram as sopas, de caldo grosso quando de trigo, e que faziam também parte da medicina. O cardápio era voltado para a sobrevivência e dividido entre irmãos. O gosto ficava restrito a alguns pratos especiais, inesquecíveis, e às sobremesas, que só eram servidas quando havia um recesso nas doenças e o tempo novamente nos franqueava alguma esperança.

Por algum motivo, nasci sem resistência para o Inverno, o que contrariava a linhagem familiar devotada à caça e à pesca em paisagens geladas. Houve até algum esforço do meu pai em me colocar de frente com os rigores de julho, para me fazer ver que eu poderia resistir a qualquer catástrofe do clima. Ensinava que o acampamento precisava estar bem fornido de lãs e que os sapatos deveriam ficar embaixo de tudo, para que o sereno tenebroso não os encharcasse.

Entre a prudência materna e os desafios propostos pelo pai, esvaiu-se o tempo, mas não a alegria de lembrar aquela casa. Lá, havia a vida plena que nos protegeria de todos os invernos.


Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas.

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