A China entrou nos debates, virou moda. E não é para menos. Outro dia meu filho de doze anos me pediu uma bicicleta e lá fui eu a um hipermercado, local que geralmente evito e detesto, em busca do regalo. Na minha cabeça deveria ser uma escolha entre Caloi e Monark, marcas consagradas e que desde que me lembro eram as opções oferecidas pelo mercado. Na ponta da gôndola estava lá a escolhida: uma bicicleta chinesa, algo que nunca imaginei. Bonita, mais barata e aparentemente mais robusta. Não teve jeito, levei uma para casa. Com manual escrito em chinês, mas isso já é uma outra história, a da montagem. O fato é que os produtos chineses estão invadindo tudo, por combinarem qualidade e baixo preço. Bom para o consumidor, bom para o Brasil. Mas um fato econômico está colocado à espera da crítica, e da maior relevância: até quando a balança comercial suportará essa invasão? Quando acontecerá a crise cambial? No momento temos a saudável situação de ter bons preços nas commodities agrícolas e entrada significativa de capitais de risco para investimento. E se essa lua virar? Lembrei desse fato para comentar aqui o artigo de Guy Sorman publicado no Diário do Comércio de São Paulo no dia 27 abril ("Tigre de Papel"). Não foi surpresa para mim porque Sorman é um liberal esquisito, mais para esquerdista do que para direitista. Já levantei a tese de que o Ocidente teria que rever a sua estrutura social-democrata, que eleva impostos e reduz a jornada de trabalho, se quiser fazer frente a esse portento que emerge do Oriente e toma conta do mercado mundial. Ou faz isso ou sua indústria poderá ser sucateada, vez que empresários de todo o mundo estão transferindo suas plantas para lá. Uma das primeiras indústrias a fazer isso foi a Matel, de brinquedos, já se vão uns vinte anos. Sei de indústrias de autopeças brasileiras que seguiram o mesmo caminho. Como a França é o paraíso da vagabundagem bancada pelo Estado entendo que deverá estar sofrendo duramente com a competição chinesa, mais do que qualquer país. Talvez Sorman reflita no seu artigo tão ácido com a China essa realidade retumbante. Entendo, todavia, que ele deixa transparecer também no artigo uma contaminação mental que muitos auto-proclamados liberais dela não consegue escapar, qual seja, de utilizar categorias marxistas em suas análises sem mesmo se darem conta. Vamos ao texto. Falando da prosperidade chinesa, comenta: "É verdade, 200 milhões deles, felizardos por trabalharem num mercado globalizado em expansão, estão cada vez mais usufruindo os padrões de vida da classe média. O um bilhão de chineses restantes, porém, estão entre os mais pobres e mais explorados povos do mundo, até sem direitos e serviços públicos mínimos. O PC, se já não é mais tão totalitário, ainda é cruel e opressivo. Sua falsidade foi totalmente revelada na crise da Aids no país. O problema é mais grave na província de Henan, onde um número incalculável de camponeses pobres contraiu a doença nos anos 80 depois de venderem o plasma de seu sangue - em um processo que envolve a retirada do sangue, a mistura com outros tipos de sangue e, após a extração do plasma, o sangue era injetado novamente nos doadores. A China não fez os testes de HIV e terminou infectando os doadores ao devolver-lhes sangue contaminado. Centenas de milhares já morreram". 200 milhões de almas, essa "ínfima" parcela da população chinesa, corresponde a algo equivalente a 3 vezes a população total da França. Será que falta senso se proporção a Sorman? Não se está a discutir o totalitarismo do regime político, mas sim, a sua entrada espetacular no mercado mundial como produtor e vendedor de produtos industrializados, o fato novo da maior relevância acontecido nos últimos anos, que obrigará países como a França a rever a sua estrutura interna de trabalho. Também não se está a discutir as mazelas acumuladas naquela sociedade. O fato de alguns "muitos" enriquecerem em função do livre-mercado não anula o passivo acumulado na nação como um todo. E se essa parcela não tivesse enriquecido a miséria total seria ainda maior. Manter empobrecidos os poucos "200 milhões de almas" em nada curaria a população tomada pelo HIV. Vemos aqui também a lorota sempre repetida dos partidários de Marx sobre a tal desigualdade. Ora, a desigualdade não é nada, é inerente à condição humana, não é argumento para sustentar uma discussão econômica séria a menos que você seja comunista. E não seja liberal. O liberalismo de Sorman precisa ter muitas qualificações. Ele defende o primado da liberdade sobre a igualdade ou o contrário? No texto mais parece um marxista do que um liberal. Continua: "A migração das zonas rurais pode ser uma saída, mas não é fácil encontrar um trabalho permanente na cidade. Exigem-se todos os tipos de licença e a única forma de consegui-las é subornar burocratas. Multidões de migrantes - e a China tem atualmente 200 milhões deles - se mudam de um canteiro de obras para outro, recebendo uma pequena ração, no máximo. Geralmente, os migrantes não ganham permissão para trazer suas famílias para viver com eles e, mesmo que pudessem, conseguir acomodação e educação para as crianças seria praticamente impossível". Qualquer processo de urbanização é traumático. Nós próprios no Brasil ainda não concluímos esse processo e todo tipo de choque e de pressão social decorre desse deslocamento rápido de população. O que Sorman omite é que a alternativa é manter essa gente no seu lugar de origem, na sempiterna miséria em que sempre viveu. É o argumento reacionário convivendo, lado a lado, com o argumento revolucionário, uma incongruência que o autor não percebeu. O destino da humanidade é se aglomerar nas grandes cidades, assim na Europa como na China. A isso sempre se chamou de progresso. No Brasil descobrimos que um residente em uma favela vive mil vezes melhor do que o um "morador" em alguma fazenda perdida no interior. "Não há nada que garanta que essa chamada ’minoria’ - um bilhão de pessoas - vai se integrar com a China moderna. Também é possível que ela continue pobre, já que não se diz nada sobre como determinar seu futuro, mesmo que os membros do partido fiquem mais ricos. O pesquisador enfatiza minha idéia fundamental: ’Você não tem nenhuma confiança na habilidade do partido em solucionar essas questões pertinentes que você destacou?’ É isso, eu não tenho". Mas Sorman esquece de dizer que mantido o status quo é garantido que essa "minoria" ficará confinada à sua miséria. Seu artigo não passa de uma síntese de rancor e denuncismo barato que mais caberia na boca de um comunista de carteirinha, talvez de linha chinesa, e não de alguém que se diz liberal. São as voltas que essa vida dá. Nota do Editor: José Nivaldo Cordeiro é executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente em São Paulo. Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias coletivistas. É um dos mais relevantes articulistas nacionais do momento, escrevendo artigos diários para diversos jornais e sites nacionais. É Diretor da ANL - Associação Nacional de Livrarias
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