É que ninguém, rigorosamente ninguém, o sabe. Mas Isabela carrega mais que o ofício de mera costureira de plantão do vilarejo. O olhar baixo não a denuncia, a voz calculadamente pausada pouco revela. Notem, porém, a segurança com que desenha seus gestos, a firmeza com que responde sim ou não ao bispo ou à manicure. Não é casual que tenha sido entregue a ela, e tão-somente a ela, o segredo daquele quarto. Mirem como já está de pé, a madrugada se desconfigurando, quando sequer as galinhas ensaiam abridela de olhos. Destempera o sono com café sem açúcar, num amargo com que se habituara desde menina. Naqueles tempos topara também com a missão que a guiara até ali - a de, veladamente, emoldurar destinos. Não nas minúcias das fatalidades, mas nas coisas comezinhas que a vida se encarregaria de transformar em grandes acontecimentos. Fora assim, numa espécie de pacto estreito, que a mãe lhe confiara aquela chave trazendo tons dourados nas extremidades. Deixou que ela abrisse a porta. Mais leve do que imaginara. Dentro, as estantes soando gigantescas. Não perguntou por quê, mas sabia, beirando a primeira década de existência, que o tempo das bonecas de pano daria lugar a uma nova e sutil forma de passar os dias. A partir dali, embonecaria a sorte dos outros. Gostou demasiado da brincadeira. A ponto de estar aqui, as rugas agora fazendo mapas continentais à face, cumprindo o velho ritual. Sob luz de vela, caneta em bico-de-pena, estudando o emaranhado em que se convertera o caminho de cada um na vila. Fosse resumir, era ela quem cuidava do desenrosco. Direcionar o biscate de Josefina, que desaguaria no presente singular de Zito, em primeiro aniversário. Ajeitar a rima na poesia de Délio, a que domasse o querer de Leda. Fazer feirantes de roça toparem com lentes providenciais, corrigindo a miopia de Timotinho. E cada detalhe cuidadosamente anotado aos livros individuais dos moradores. Os mais densos pertencendo à gente que, volta e meia, experimentava os freios de arrumação sob receita de Isabela. Convento temporário para Sílvia, menina sem limites; beijo roubado para Dilma, tímida à quintessência; os livros se tornando paixão súbita de Juarez, a que se livrasse do baralho. Mas coleção de nós como a deste momento ela enfrentara poucas vezes. Vira nascer a era do rádio, a energia elétrica expandindo fios, o telefone inaugural, a tevê chegando. Entrara na fila de visita ao primeiro computador do lugar. Se surpreendera com tudo isso sem perder o fôlego. Mas se o mal-estar lhe impregnara com os celulares variando de mão em mão, a internet se encarregaria de roubar-lhe certezas definitivas. E de subverter de vez uma ordem que julgava manter em torno dos passos do distrito. Como se desvencilhar daquela teia era no que exaustivamente pensava, assistindo à transição lenta para a manhã. A flâmula da vela tremulando leve, bateu-lhe a inspiração singela. A do fogo, símbolo perene de vida, emblema para além das piras funerárias. Lera sobre isso numa menção ligeira de almanaque a um certo Walter Benjamin, a quem ainda não fora apresentada. E fazia sentido. Foi correndo despertar a filha Sabrina, aos 12 anos rainha em assuntos de navegação na rede mundial de computadores. Posta a frente da chave de bordas douradas, ela mirou enviesado. Mais ainda diante daquelas encadernações personalizadas. Ajudou a mãe, jeito paciente, a organizar as pilhas ao lado do teclado. Não compreendia bem por quê, mas lhe soprava a convicção de que, no curso da revolução digital, havia sido docemente eleita para se dedicar mais que à mera diversão do orkut. Nada lhe fora dito, mas estava pronta para ajudar a desacelerar incompreensões, corrigir descompassos, incensar virtudes. Veladamente zelar pelos pequenos milagres. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia, onde publica às quartas-feiras.
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