Darci Ribeiro me perdoe onde quer que ele esteja, mas é inspirado nele que resolvi escrever o texto que segue. No artigo "Uirá vai ao encontro de Maíra", Darci conta a saga de um índio que deixou a própria tribo para encontrar Deus - desesperançado com o rumo que sua vida e a de seus pares havia tomado. Deus no caso era Maíra, divindade criadora desse mundo, cuja morada era impossível de ser alcançada. Pelas tradições indígenas, todos aqueles que trilharam esse caminho acabaram mortos ou transformados em pedra. Uirá teve um fim semelhante ao descrito pela lenda. Ele não virou pedra, mas depois de linchado e humilhado pelos Karaiwa (sertanejos e moradores de vilarejos no interior do Maranhão) se jogou nas águas do rio Pindaré e morreu devorado pelas piranhas. A história de Uirá existiu mesmo e o final trágico ficou registrado em jornais do Maranhão e até de circulação nacional. Uirá era um pai de família da tribo Urubu, povo que habita (não sei se a comunidade ainda existe) parte do território maranhense. O antropólogo Darci Ribeiro acompanhou o lamentável processo de desvirtuamento da cultura desse povo pela interferência do homem branco, no caso, sertanejos que avançavam pela mata. O índio Uirá assistiu impotente à lenta destruição das tradições de sua tribo com a chegada dos Karaiwa (homens brancos). Além das doenças que dizimaram tribos inteiras, a chegada de uma cultura nova, especialmente em termos religiosos, teve efeito devastador. No artigo, Darci mostra a gradual substituição de antigas crenças do povo indígena - muitas delas construídas ao longo de décadas e séculos, por outras formas de interpretação da realidade por causa da indesejada e inevitável influência do homem branco. Reuniu documentos que mostram como as lendas e histórias foram "adaptadas", de maneira a absorver a certeza prática da pseudo-superioridade dos Karaiwa. E como, diante da impossibilidade de interpretar a nova realidade pelas próprias convicções, os índios capitularam, o que resultou no completo esvaziamento da cultura original herdada dos antepassados. Se no campo coletivo a perda de identidade produziu aberrações como índios vestidos com a camisa do Flamengo, de sandália Havaiana e calção Adidas; no campo individual a situação foi ainda mais grave. Índios como o Uirá de Darci Ribeiro mergulharam em um doloroso processo psicológico de auto-aniquilação e perda do prazer de viver. Algo como depressão aguda. Foi esse o mal de Uirá - e que o levou a fazer a corajosa empreitada. Com o corpo pintado e adornado, queria ser digno de entrar na casa de Maíra, mas acabou recebido a socos e pontapés pelos sertanejos. Na interpretação dele, provações a que seria submetido caso quisesse ser recebido pela divindade em que acreditava. Já nesse caso havia uma deturpação da crença original. Antes do homem branco surgir no imaginário indígena, as provações para chegar a Maíra eram outras e não incluíam a recepção hostil dos Karaiwa. Como um Dom Quixote das matas, enfrentou moinhos e exércitos, mas caiu vencido pelo cansaço e pela dor de ver seu povo irremediavelmente dominado. Uirá morreu pela falta de perspectiva. Mal sabia ele que isso afetaria ainda muito mais gente nesse país. Para nosso bem, o mesmo lugar onde viveu Darci Ribeiro. Nesse mesmo país, quase 70 anos depois da morte de Uirá, há cada vez mais jovens - e alguns pais de família, totalmente sem perspectiva. Com a agravante de não ter sequer uma referência anterior, como têm os índios. As pessoas que sofrem com a falta de futuro não encontram explicação fora da sociedade e pior, têm medo de procurar, transgredir, transcender. O medo é um estágio avançado desse mal moderno, que felizmente não atingiu nem Uirá nem Darci. Graças à coragem deles, essa história ainda pode ser contada de geração em geração. Nota do Editor: Marcos Alves é jornalista e diretor de vídeos.
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